Oportunismo solidário
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Sábado, 23 de Julho de 2005 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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O filme dá amplitude temática à corrupção ao agitar corajosamente o âmago do empreendedorismo filantrópico e da responsabilidade social das empresas. Expõe a hipocrisia existente por trás dos atos das inúmeras associações do chamado terceiro setor que tratam a miséria como mercadoria. O que importa é o que acontece, o que os “vitoriosos sociais” fazem quando têm oportunidade de se revelar, e não seus discursos e relatórios. Ao correr o risco da generalização, Sérgio Bianchi penetra com lucidez em muitas particularidades difíceis de serem vistas na relação entre a bondade e a esperteza. Acerta em cheio quando questiona o lucro solidário a partir do estabelecimento de um paralelo entre episódios da atualidade e outros do tempo da escravidão.

Pelo que mostram as câmaras de Bianchi, recolher donativos para crianças pobres tem sido um bom negócio. Nas contas de “Quanto vale ou é por quilo?”, cada criança carente gera cinco empregos diretos nesse universo misto de compaixão com perversidade. As cenas de crianças desfavorecidas, postas por toda uma semana em hotel de luxo e passeando em shopping, com direito a três refeições fartas, suscitam murmúrios de uma socialite “solidária” como exemplo de sublimação do “quanto é fundamental se preocupar com o próximo”. Assim, o modelo se repete quadro a quadro na disputa por mendigos nas ruas e no paroxismo vulcânico da libertação dos males da miséria por meio do vômito extático de união direta com o sobrenatural.

A vocação de ajudar os necessitados e de tratar a comunidade como uma nova família esconde muitas vezes a hipocrisia das pessoas tomadas pelo oportunismo solidário. Blindadas por esse discurso embarcam no alheamento quanto à origem do dinheiro que recebem. Doações de “caixa dois” da sonegação fiscal, agiotagem, lavagem de dinheiro, narcotráfico, enfim, é como se pouco importasse de onde vem o dinheiro do patrocinador. Fazer “pequenas diferenças”, para deixar o mundo “um pouco melhor” a custo de grandes diferenças que normalmente deixam o mundo muito pior é uma anomalia social tratada com contundência nesse drama espetacular da cinematografia brasileira.

O paralelo histórico de “Quanto vale ou é por quilo?” denuncia os ganhos vantajosos da falsa generosidade. No período escravocrata, mostra a alforria como exemplo de bom investimento e, nos dias de hoje, revela a mais-valia da inclusão. Tudo com referência a situações extraídas do Arquivo Nacional, do final do século XVIII, e a casos visíveis de duvidosos, mas premiados, projetos de “responsabilidade social”. O filme exibe o glamour dos eventos de promoção da inovação solidária e as manobras de preparação de empreendedores sociais para que fiquem aptos na arregimentação do voluntariado e não cometam deslizes, principalmente na administração dos recursos suspeitos.

Tem uma cena do filme que mostra bem como se dá a coação da honestidade como requisito para alguém “vencer com o social”. É quando uma “nova amiga” cheia de complacência empresta dinheiro para a festa de casamento da filha de uma líder comunitária e, movida por outros interesses, na primeira ocasião, cobra o pagamento em forma de cumplicidade: “Eu lhe ajudei, agora estou precisando de uma pessoa de confiança”. Pior é a cena da velhinha “laranja” que recebe uns trocados para ir visitar o filho que está preso, e inadvertidamente assina “alguns papéis” na empresa que trabalha, passando assim a contribuir com o desvio de recursos destinados a projetos de ressocialização de presidiários. Além do dinheiro que corre por fora, os “benfeitores” dessa ação social faturam com o aumento da massa carcerária que ajuda a expandir a construção civil e aquece a economia.

Das ocorrências abordadas na obra de Sérgio Bianchi, a que mais parece se aproximar do submundo da responsabilidade social das empresas mancomunadas com entidades filantrópicas é a do projeto de inclusão digital. Não é brincadeira a rede de superfaturamentos na aquisição de computadores para esse tipo de ação social. Mas o filme sinaliza para o refluxo dessa onda, mostrando que nem sempre determinados tipos de investimentos em causas sociais são bons para o próximo nem oferecem bom retorno para a empresa. Simboliza essa contradição de atrocidades com o seqüestro de um patrocinador. O seqüestro aparece como um negócio tão moderno quanto a solidariedade de mercado. Da mesma maneira que a miséria serve de bandeira para muitos projetos de captação de recursos, a violência faz o marketing no seqüestro para a “distribuição de renda”. O personagem que pensa assim conclui simplesmente que se a responsabilidade é de todos, o risco também deve ser.

Na provocação a esses vícios da solidariedade profissional Sérgio Bianchi preserva a expressão ONG. Dá uma chance para que aquelas organizações da sociedade civil que são sérias, que têm o consciente papel de instrumento político da sociedade, se valham do seu filme para se distinguir positivamente da enxurrada de associações, institutos e fundações beneficentes, cujo objetivo real é aumentar o poder financeiro, social e político dos seus prósperos “benfeitores”, dentro da manha de que doar é um instrumento de poder. Todas as organizações da sociedade civil e todas as empresas sérias, públicas e privadas, deveriam exibir esse filme para seus integrantes e beneficiários. O diretor teve a ousadia de se libertar dos pressupostos do politicamente correto. É um instrumento de acesso à realidade. Um divisor de caminhos na encruzilhada da moralidade brasileira. É chocante, mas faz bem à indignação transformadora.

Serviço: “Quanto vale ou é por quilo?”, Sérgio Bianchi, Rio Filmes, 90min. Drama. 2005. No elenco, Hérson Capri, Zezé Motta, Caco Cioler, Myriam Pires, Joana Fomm, Cláudia Mello e Marcélia Cartaxo. Para saber onde o filme está em cartaz, acesse o site http://cinema.terra.com.br e entre com o título do filme no espaço de busca.