Os esteriótipos Daslu e Daspu
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 16 de Abril de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Daslu e Daspu são duas grifes, uma paulista e outra carioca. As duas têm sido alvo de atenção do noticiário há menos de quatro e há mais de três anos. Tornaram-se dois estereótipos sociais. Uma, marcada pela opulência e pela gastança, a outra, acentuada por sua simplicidade e pela origem no meretrício. Daslu é alto consumo e Daspu é auto-consumo. Daslu é uma junção dos nomes das primeiras sócias da loja, a dona Lúcia e a dona Lourdes, apelidadas de “Lu”. Daspu é uma corruptela de “Das putas”.

A dona da Daslu é Eliana Tranchesi, 53 anos, “empresária”, mãe de duas filhas e de um filho. Sua loja é voltada para “mulheres sem vida”, aquelas que gravitam em torno do supérfluo. Eliana vem sendo presa e solta em um fluxo e refluxo judicial, inspirado em sete mandatos de prisão, por organização criminosa, sonegação de impostos e falsidade ideológica.

A dona da Daspu é Gabriela Leite, 58 anos, “prostituta aposentada”, mãe de duas filhas. Sua butique é voltada para as “mulheres da vida”, aquelas que vivem da prostituição e precisam estar bem vestidas para a “batalha”. Gabriela vem se destacando por fazer do preconceito a comunicação de mercado da sua marca e, em consequência disso, está lançando um livro intitulado “Filha, Mãe, Avó e Puta” (Objetiva, 228p. 2009).

O caso Daslu e o caso Daspu são bastante curiosos porque além de estarem a um só tempo intimamente ligados e amplamente distantes servem de termômetro social com relação aos insidiosos perfis que representam. Juntos, contam a história de uma luta entre o que seria um país de primeiro mundo e um país de segunda mão, na qual a rainha fica nua e a gata borralheira faz a festa.

A megaloja da Daslu foi inaugurada em 2005, em um prédio de arquitetura neoclássica, com 20 mil metros quadrados, quatro andares e “estacionamento de maridos e amantes”, com carro, lancha e charutaria, na zona nobre de São Paulo. A fita de inauguração foi cortada pelo então governador Geraldo Alckmin, cuja filha mais velha, Sophia, 28 anos, cuidava dos interesses da loja na condição de gerente.

A produção de confecções da Daspu surgiu como uma alternativa de manutenção da ONG Davida, então presidida por Gabriela Leite, e foi lançada em desfile na Praça Tiradentes, área de prostituição do Rio de Janeiro. O nome Daspu foi uma reação espirituosa à pompa da Daslu que, incomodada, tentou na justiça evitar que a grife das meretrizes se desenvolvesse, mas, com isso, acabou dando visibilidade à marca comercialmente indiferente e socialmente rival.

A dança dos estereótipos Daslu e Daspu revela que a opulência já não exerce mais o fascínio que antes exercia. Houve uma época em que a ostentação distinguia positivamente as pessoas na sociedade. Ostentar representava dignidade, excepcionalidade, e hoje, começa a significar pobreza espiritual, necessidade de auto-afirmação e em muitos casos até grosseria social. A era do fútil está ameaçada pelas conjunções incontroláveis que se processam no mundo. O norte moral da obsessão pelo exagero do consumo, como distinção social, aponta para a decadência, enquanto o comportamento criativo cresce na percepção sociedade.

A falácia da opulência parece ameaçada pelo filtro do tempo social, cultural e político, que altera a compreensão das coisas. O respeito começa, mesmo que timidamente, a não ser mais proporcional ao grau de ostentação, mas ao jeito com que as pessoas se colocam diante da vida. A qualidade do ser tende a ser colocada acima da etiqueta da sua roupa, das suas jóias e do seu meio de transporte. Isso, porque, ao sinalizar para o que vale a pena mesmo na vida, a intensificação da vivência da dinâmica dos processos humanos interativos indica que é a pessoa em si o que temos de mais valoroso.

A sociedade transferiu para as celebridades midiáticas o poder da excentricidade e vem se comportando mais ou menos com intolerância diante da opulência na “vida real”. O que é permitido no mundo da ficção não é mais aceito na realidade objetiva. Este é um fator social a ser considerado em casos como o da Daslu e da Daspu, onde a exibição da extrema desigualdade determina a fronteira da gabação. Situações de assimetria estariam reservadas somente ao circo das quatro telas-irmãs (cinema, televisão, computador e celular), por onde escoam a solidão das multidões.

Os julgamentos formados no senso comum são resultados de observações de muitos fatos e sentimentos controversos. O olhar quase ficcional sobre a vida impõe em certas circunstâncias sua face discriminatória. A visão ora obstruída e ora bem apurada das sensações promovidas pela dicotomia nos casos Daslu e Daspu está fundamentada no recurso da caricatura, por meio do qual nem sempre chegamos a classificações conscientes. Daí, o julgamento crônico a sentenciar que “uma dondoca é uma dondoca” e que “uma prostituta é uma prostituta”.

Somos impelidos a ajustar o que vemos às nossas ideias preconcebidas de discriminação. O modo como foi inaugurado o templo do consumo vanglorioso da Daslu precipitou o seu julgamento popular. O marketing da opulência não poupou platéias em uma megacidade cheia de toda sorte de misérias. Ao transbordar seu exibicionismo para além do seu público de interesse, o discurso da Daslu bloqueou qualquer ajuizamento lógico que pudesse levar a outra forma de ver o empreendimento. A Daslu é um caso concreto de confusão entre mensagem extensional e denotativa.

Por outro lado, a irreverência satírica da Daspu transformou em sucesso tudo o que guarda de negação à Daslu no espírito de sua marca. Como se vê, essa questão não se restringe aos fatos, nem a angulações de simples contraposição. Tanto a Daslu quanto a Daspu adotam caráter direcional em suas comunicações. Ambas orientam classificações. O que valoriza ou desvaloriza seus enunciados está entregue aos níveis abstratos do tempo. Fosse no auge do ciclo do café (passagem do século XIX para o século XX) a leitura da sua presunção exagerada seria de grandeza.

A sociedade é uma complexa rede de convenções. Daslu e Daspu nos contam cada qual uma história, todavia, o que vale para a sociedade é o fato visto como o que se espera dele e não como seus anunciantes querem que sejam percebidos. É por esse viés que a desventura da Daslu representa o definhamento social da exorbitância, enquanto o êxito conceitual da Daspu ganha vulto de nascimento social do olhar pelos olhos da equidade. O que está por trás dessas vicissitudes entre o “fashion” do esbanjamento e o “glitter” dos recursos minguados é um estado social sensível ao significado estrutural de poder: da mesma maneira que a subserviência desgasta a noção de pessoa, a demonstração gratuita de superioridade bane a noção de humanismo.

O deslocamento de algo que talvez não devesse ser o que é (ou como é) se dá pelas ideias-força dos pólos envolvidos. Se de um lado a palavra Daslu quer dizer parasitismo social e do outro Daspu quer dizer reinvenção social, o pêndulo do senso comum gravita para a parte mais libertária, independente de, enquanto correspondentes culturais, os dois empórios guardarem estereótipos de arriscada interpretação segregacionista, com castelos, torres e cidades amuralhadas contra os arrastões em condomínios de luxo. Embora as duas se encontrem em suspeitas de marginalidade econômica, uma fraudulenta e a outra sobrevivente, o que as distingue é bem maior que tudo: Daslu é algo de fora; Daspu é algo de dentro.