Os limites da televisão
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 6

Quinta-feira, 03 de Junho de 1999 – Fortaleza, Ceará, Brasil

Artigo em PDF

Imagine o jogo de interesses em um setor que disputa uma verba publicitária estimada em R$ 2,8 bilhões ao ano e tem o poder de promover significativamente a cidadania ou a alienação social de um país inteiro. É quase inimaginável, mas é uma questão que precisa ser resolvida pela sociedade, governos e mercado, na busca do melhor lucro social. Por enquanto, a sociedade está fora da mesa que revisa, inclusive, artigos constitucionais que tratam da participação de capital estrangeiro nos meios de comunicação de massa brasileiros.

Apesar do excelente apuramento técnico que projetou internacionalmente a tevê feita no Brasil, a decadência de valores e de qualidade estética da nossa programação não tem precedentes. Ao impelir, via satélite, a redução de sentidos, empobrece, embrutece e entorpece as pessoas dentro dos seus nem sempre tão doces lares. Sentimos menos o cheiro das flores, a melodia e a poesia da música, as cores do mundo que nos cerca. Acariciamos menos e já dispensamos adjetivos. Muito pelo contrário, a cada dia tornamo-nos aparentemente mais receptíveis ao glamour da violência e do escândalo midiático que, em seu pano de fundo, celebra a intriga e ignora a investigação jornalística.

Pressionada por ser fantasticamente instantânea, a televisão acaba mal resolvida na hora de dosar entretenimento, informação e cultura, para cumprir o seu papel de instrumento do interesse coletivo, por ser uma concessão pública. Acusada desde McLuhan de ser um veículo frio, imune a conteúdos, ela fica se submetendo ao ridículo de se limitar a fazer interpretações com 15 segundos de duração. Essa crise de identidade e de ética priorizou a bandalheira nos canais comerciais e, salvo uma ou outra experiência localizada, o risco de aprofundar discussões no video ficou por conta da tevê pública.

Os experts em televisão continuam defendendo que entrevista, debate e outros programas em que a imagem se faz na subjetividade do telespectador, através das palavras, não devem passar de talk shows. Enfim, televisão não seria lugar para quem deseja se aprofundar em nada. Postura tecnicamente discutível e socialmente injusta, num país de analfabetos e leitura cara. O fato de ser um tubo de imagens não proíbe a tevê de gerar conversas atraentes, com pessoas que tenham o que dizer, enquanto a gente tem o privilégio de observar alterações de semblantes, gestos de mãos e outros detalhes importantes para a compreensão de um discurso.

Evidente que a televisão é melhor na linguagem dinâmica dos cortes de imagens e sons, mas ela precisa também da apreensão linear para não se tornar chata no seu insípido excesso de variedades. Sendo eminentemente regida pelo mercado, sua grade de programação foi desenhada para faturar com o que tem de superior. Fazendo uma analogia com o futebol, é como se fosse possível fazer uma equipe somente com atacantes comprovadamente goleadores. Em tese, seria o melhor time do mundo mas, na realidade, sem meio de campo, sem zaga, sem goleiro, dificilmente não seria o pior.

As tevês públicas que não são submetidas às imposições comerciais, foram lentamente qualificando sua audiência e hoje são vistas como ameaça pelas grandes redes de canal aberto. Transformadas em organizações sociais, a TV Cultura, de São Paulo, e a TVE, do Rio de Janeiro, passaram a ampliar as possibilidades de apoios culturais, provenientes da iniciativa privada, com publicidade institucional e não de produtos. A programação comedida dessas televisões começa a incomodar porque muitas empresas têm procurado associar sua imagem ao caráter de responsabilidade social dessas emissoras.

Naturalmente, muitas articulações estão sendo feitas para que a televisão pública não possa receber verbas publicitárias do setor privado, embora a tevê privada receba, sem reclamar, mais de R$ 500 milhões de propaganda do governo federal, por ano. Os temas em pauta variam e terão efeitos relevantes na vida brasileira. Se a TVC e a TVE serão privatizadas ou se as também excelentes TV Senado e TV Câmara poderão ser acessadas pelos “sem-cabo”, assim como se as televisões comerciais deverão ser adquiridas e manipuladas por seitas ou se receberão capitalização externa, são decisões que dependem da nossa capacidade de mobilização, enquanto acionistas-contribuintes e consumidores.

Partindo na frente, mais uma vez, a TV Cultura está montando um manual de conduta jornalística para nortear sua postura. Os primeiros resultados são animadores por considerar que o jornalismo deve levar em conta a ética do cidadão, com tempo de reflexão, com serviço e entretenimento sadio, evitando matérias movidas por apelos da degradação humana, cultural e ambiental. O foco na cobertura de áreas de interesse permanente e a inclusão de informações das diversas regiões brasileiras, sem “limpeza” de sotaque, são alguns dos aspectos que vão credenciando a emissora a ser cada vez mais respeitada e a apontar sinais de saída. Entretanto, é bom a gente se mexer, senão o resultado dos conchavos em gabinetes acabarão estourando, sem controle, dentro de nossas casas. E fuligem não tem como reclamar.