Os mil gols de um só Romário
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 24 de Maio de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Ao fazer o seu milésimo gol, no domingo passado, dia 20, o atacante Romário, 41 anos, agradeceu à sua família, aos amigos, torcedores e companheiros de jornada. Mas a história desses 1.000 gols tem mais valor e sabor por ser ele, Romário, uma personalidade única que, mesmo pressionado e muitas vezes injustiçado, não se deixou tragar pelos encantos do mundo das celebridades. Romário teve como principal adversário em sua trajetória a coação pelo enquadramento aos padrões do mercado da bola, mas nunca mudou de cara, de jeito, nem deixou de preservar a liberdade pessoal e profissional que deu feição à estética do seu futebol.

O mago da pequena área converteu de pênalti o gol mais importante de sua carreira, na vitória de 3 x 1 do Vasco sobre o Sport, pelo Campeonato Brasileiro, no estádio São Januário, o campo onde mais fez gols em sua carreira. Dois minutos antecederam a cobrança. Tempo suficiente para o torcedor se preparar para olhar e não perder o magnetismo desse momento histórico. Bola em um canto e goleiro no outro. O craque beijou a bola, chorou e saiu para a volta olímpica. Não fez discursos politicamente corretos, não mandou mensagens, senão a da alegria, a da vitória, a da façanha até então só conseguida por Pelé em 19 de novembro de 1969, na vitória de 2 x 1 do Santos sobre o Vasco, no Maracanã.

O gol de número 1.000, autoriza uma relação histórica de causas e efeitos que marca o começo da eternização de Romário. O que ele conquistou não pode ser tomado pelos incomodados com a sua vontade e prática de, embora endeusado como craque, ser uma pessoa comum. Romário é um pouco Pelé e um pouco Garrincha (1933 – 1983). Pelé, pelos mil gols, e Garrincha, pela liberdade existencial. Como os dois, tem poética no futebol. Foi artilheiro por onde jogou, no Brasil e no exterior. Foi fundamental para muitas vitórias da Seleção Brasileira, em especial a conquista do tetra-campeonato mundial, quando, mesmo boicotado e perseguido, foi chamado de última hora para classificar e dar a vitória ao Brasil.

O racionalismo comercial que domina o mundo do futebol invade e modifica o comportamento dos criadores espontâneos, transformando a vida dos atletas em um teatro de aparências. Romário tem uma carreira bem-sucedida em todos os sentidos. Por ter rompido com a matemática dos resultados e dos esquemas negociados em bastidores, fazendo jogadas prazerosas, gols emocionantes e quebrando as regras sisudas da técnica, foi classificado de polêmico e perseguido pelos inconformados com a sua liberdade.

A história de Romário é a síntese da história de um conflito entre o futebol instrumental e o futebol expressivo, onde reina o dilema dos craques que, para serem celebridades, precisam engessar suas alegrias. O cineasta italiano Pier Paolo Pasolini (1922 – 1975), amante do futebol, dizia que o artilheiro de um campeonato é sempre o melhor poeta do ano. O drible, o passe inspirado e o gol têm força onírica. Pasolini argumentava que a retranca e a triangulação, característica do futebol europeu que está dominando o esporte em todo o mundo, é futebol de prosa, por estar baseado na execução organizada da linguagem desportiva.

Romário não tem a ver com isso, ele é poesia, um craque livre, do tipo que define a jogada com emoção e toque iluminado. Tem a beleza do inesperado e a grandeza da autenticidade. Por ser um jogador intenso, de sangue bom e coração ardente, Romário foi encarado pelos burocratas do futebol como um obstáculo e sofreu os efeitos da intolerância da cartolagem, que por muitas vezes tentou tirá-lo de cena e destruí-lo com ironias e toda sorte de maldades e provocações. Isso não foi possível simplesmente porque Romário em campo é sempre uma expectativa de gol, de espetáculo, de manifestação de genialidade. Ele é um bom achado, uma grata revelação do nosso futebol.

O futebol virou um grande negócio internacional e o comportamento não servil de Romário irrita os modeladores de estrelas. Para eles, as atitudes e reações do craque não combinam com o seu prestígio internacional. Nascido na favela do Jacarezinho, no subúrbio do Rio de Janeiro, e criado na Vila da Penha, ele preferiu não trocar o nome favela por comunidade, ao se referir às suas origens. Não deixou de lado os amigos quando ficou famoso. No auge da fama, jogava pelada e futevôlei na praia, com a moçada da zona norte, com os amigos que o chamam de “Beção”, forma abreviada de “Cabeção”, seu apelido de infância.

Na visão dos mercadores do futebol tudo isso é um sacrilégio. Em 1995, quando foi considerado o melhor do mundo, deixou o disputado Barcelona para jogar no Flamengo, só para poder viver no Rio de Janeiro. O mercado da bola não entende isso. Não entende um ídolo que se emociona como um ser humano normal, que chora e se indigna. Quando Romário foi cortado da seleção na Copa do Mundo de 1998, pela cartolagem do Zagallo e do Zico, mandou fazer uma caricatura dos seu dois algozes na porta dos banheiros do Café do Gol, uma boate que tinha no Rio. Zagallo sentado em um vaso sanitário e Zico segurando um rolo de papel higiênico. Deu uma confusão danada, mas ele expressou publicamente o que sentia.

Essas respostas claras e diretas não são permitidas pelos agenciadores de atletas. Elas elevam o risco-Romário e atrapalham os negócios. Os cartolas não querem saber as razões do craque ser avesso às concentrações. Preferem estigmatizá-lo como indisciplinado a compreender que quando ele sai para uma balada fica contente e marca mais gols. Romário tem algumas posturas insuportáveis para essa gente. Ele é franco, não se rende à sedução escravocrata do mundo das celebridades e não se acanha ao dizer que um dia Deus olhou para ele e disse: “É o Cara!”. A turma da bola fica injuriada com a irreverência um tanto ingênua desse tipo de manifestação.

O certo é que o mundo das estrelas não agüenta a presença de um vencedor humilde e ao mesmo tempo desbocado. Para completar, Romário tem uma filha com síndrome de Down e não se envergonha nem procura escondê-la das câmaras e dos olhares preconceituosos. Pelo contrário, logo que soube que a sua bela Isabella parira uma criança com necessidades especiais, ele foi para a arena pública dizer que sua filha Ivy é uma benção. E não falou isso da boca para fora, com o discurso vazio da desculpa. Explicou que ela é uma benção porque lhe trouxe a oportunidade de ser mais paciente e mais tolerante.

Depois que marcou o gol de número 999 foi criticado por ter ficado ansioso para fazer logo o milésimo. Quem não ficaria? O gol demorou e, mais uma vez, a condição psicológica de Romário revelou a simplicidade eufórica do craque. A exposição do seu desejo foi bombardeada por muita gente que não admite aos campeões serem pessoas comuns. Houve quem o criticasse pelo fato de ter levado toda a família ao Maracanã para ver o gol mil que ele não conseguiu fazer. Por que essa cobrança? Por que um ídolo deve esconder suas fragilidades? Porque às celebridades só é permitido a “emoção” premeditada.

Quando não conseguiu fazer o milésimo gol no Maracanã, como desejava, Romário declarou que estava ciente de que as coisas acontecem independentemente da sua vontade. Nem por isso deixou de perseguir a meta dos seus sonhos. O gol histórico foi marcado na quarta tentativa. Parecia algo interminável. A noção de prazo para o feito abalava os nervos do craque e a contagem regressiva exauria a esperança da torcida. Mas aconteceu. É fato. Faz parte da história maravilhosa do melhor do nosso futebol, faz parte da biografia de um craque, escrita com inspiração e inventividade em uma sucessão de episódios marcantes.