As plataformas de áudio a cada dia hospedam mais podcasts, muitos com conteúdos bem inventivos voltados para o consumo das pessoas enquanto estão no trânsito, nas salas de espera, nas academias, durante as refeições e em todas as filas que se possa imaginar. Não sou usuário contumaz desse formato de comunicação, mas tenho me surpreendido com alguns deles.

Recentemente ouvi um episódio do podcast “Histórias Vizinhas”, intitulado “Duas ligações – Acesso pessoal (e coletivo)”, um áudio-documentário voltado para os sons naturais e culturais da coletividade presentes na vida de cada pessoa. O autor é o comunicador mineiro Felipe Ivanicska, que se vale de narrativas audíveis e paisagens ressoantes para promover a reeducação da escuta por meio da instigação de memórias.

A edição do material gravado é bem atraente, com depoimentos que se vinculam por campos de lembranças. Cada fala, com sua respectiva citação sonora, puxa outra e mais outra, provocando liberações e recriações do que vai sendo recordado, formando-se um tecido sonoro pelo entrelaçamento de individualidades. O podcaster pergunta o que aquelas histórias repercutiram na cabeça da audiência.

Na minha cabeça, houve uma agradável reverberação durante a quase uma hora e meia do episódio. Escutar pessoas falando de criança metendo a mão na água, do som das ondas do mar e do farfalhar de água corrente me fez transbordar de lembranças da minha infância e também das tantas aventuras que fiz com os meus filhos em rios, açudes, cachoeiras e praias.

Beleza Pura (2006), da artista carioca Beatriz Milhaze

A referência sobre o silêncio das ruas no auge da pandemia, tempo em que foi possível reescutar muitos dos pássaros que pareciam ter deixado de cantar nos centros urbanos, parece até que foi relatada por mim. Alguém traz à memória vozes de pais e mães que me lembraram imediatamente do assobio do meu pai tangendo a criação e do tiii-tiiii-tiii-tiii da minha mãe chamando as galinhas para comer milho no terreiro de casa.

Com relação a sons de rua, reouvi o barulho dos ônibus quando, ainda garoto, passava férias na casa dos meus avós. Toda manhã eu acordava bem cedo para aquele ritual de calçada. O ônibus era um transporte mitológico para mim. No sertão onde eu morava, havia apenas o misto do Sr. Mário Souto, enquanto em Fortaleza os busões passavam um atrás do outro. Recordei também de uma vez em que enviei de presente para um amigo que estava morando fora do país a gravação dos sons da Praça do Ferreira, com a consonância de camelôs e as badaladas da Coluna da Hora.

No longo trecho sobre música, um acontecimento esquecido foi evocado por uma declaração que aborda o estranhamento causado por um jovem que resolveu colocar na radiola da família o disco “Clara Crocodilo”, de Arrigo Barnabé. Lembrei-me do dia em que, adolescente, fui a um aniversário na fazenda do Zé do Chaga e, em plena caatinga, pus para tocar o álbum “Relics”, do Pink Floyd. As pessoas ficaram tão caladas que nem se mexiam.

Esse trânsito entre memórias auditivas me trouxe muitos outros registros sensoriais, porém, em seu ressoar, o “Histórias Vizinhas” bate o bumbo em uma questão primordial para o Brasil: está na hora de acabarmos com o clichê de que o país não tem memória, visto que, diz o podcast, é a falta de acesso à memória que é o nosso problema. Sim, tudo passa pelo cuidado de cada um de nós com as nossas próprias memórias e, claro, onde é que elas se encaixam na memória brasileira.