Panamá literário de Ricardo Ríos
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 05 de Fevereiro de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Recebi a simpática visita do escritor Ricardo Ríos, 74 anos, no hotel em que eu estava hospedado na Cidade do Panamá, na semana passada (27/1). Ele trazia dois livros na mão e o espírito resiliente de quem já se refez de muitos golpes ao longo da vida. Conversamos sobre os círculos literários que ele criou em todo o país, sobre o programa de rádio focado em literatura, que ele produz e apresenta há oito anos, sobre geografia e história, disciplinas que abraçou como professor, e sobre o movimento estudantil, do qual foi líder universitário.

No primeiro momento ele me deu apenas um dos livros, intitulado “Memória de mis memórias” (memória de minhas memórias), edição comemorativa do cinqüentenário da ebulição estudantil panamenha, ocorrida em maio de 1958, dez anos antes do confronto dos estudantes franceses com a polícia nas universidades e nas ruas de Paris, pelas liberdades civis democráticas. O maio de 58 foi uma das mais significativas gestas da história panamenha, quando o movimento estudantil e popular enfrentou os militares estadunidenses e a própria Guarda Nacional, em uma campanha que abriria o caminho para a conquista do controle da Zona do Canal do Panamá, fato que só veio ocorrer em 31 de dezembro de 1999.

A história do Panamá é a história de um dramático e permanente transtorno político, resultante de séculos de invasões, ocupações e seduções coloniais. Ríos diz que o absurdo faz parte do cotidiano dos panamenhos, o que talvez explique a sua tentativa de compreensão do país por meio de vivências literárias. Como o tempo da literatura é sempre presente, ele mostra-se de certo modo confortado por saber que o passado se atualiza cada vez que os escritores são lidos.

O Panamá surgiu como república em 1903, por conta do interesse dos Estados Unidos na construção do Canal (1904 a 1914) que liga os oceanos Atlântico e Pacífico. Ríos argumenta que, mesmo o espaço geográfico istmenho tendo desenvolvido uma função de enclave desde o período precolombiano, o país surge como conglomerado de interesses comuns e sentido de pertencimento, no século XVI, quando Martín Fernandez e Vasco Nuñez de Balboa fundam o primeiro assentamento espanhol em Terra Firme americana.

Quem visita o Panamá e tem que pagar tudo em dólar norte-americano pode até não achar, mas Ricardo Ríos garante que o país tem uma identidade definida. Vale-se da literatura para assegurar sua afirmação. “Por trás desse país de mil máscaras, sem rosto, existe uma nação que faz da arte, do folclore e da literatura a força permanente da sua identidade radical”. Ríos cita e recomenda a todo instante uma novela, um romance, um ensaio, uma poesia ou um relato de autor panamenho para dizer do caráter do seu país.

O Panamá sempre foi visto por europeus e norte-americanos como a terra da riqueza fácil, imagem que determinou os destinos do país. “Os barqueiros do rio Chagres transportaram as barras de ouro do Peru e da Califórnia. Nenhum outro rio viu passar tanta fortuna, misérias e triunfos”, lembra Ricardo Ríos. E com razão, pois foi dessa história que derivou a construção da estrada de ferro transistmica, do Canal, da Zona Franca e do núcleo financeiro internacional.

Rearranjos de acidentes e incidentes históricos, desenvolvidos pelas trincheiras de uma historiografia das letras, fazem do Panamá literário de Ricardo Ríos uma pátria dos sentimentos densos e das dores da alma cultural ferida, diante das tensões provocadas pelo jogo do progresso dos outros, em um país onde a construção civil responde atualmente por 24% do Produto Interno Bruto. Entre derrotas e vitórias, na literatura panamenha os autores se valem do que têm de mais sagrado, que é a liberdade de descrição de si mesmos.

A superação pela literatura, como instrumento de escuta da própria cultura desperdiçada e despedaçada, serve também como forma de não se sentir sozinho diante da dificuldade de ser uma nação. A literatura panamenha realçada por Ricardo Ríos em suas memórias é uma literatura de pulsão de vida e morte, de indignação e gestação de uma visão firme, mas, ao mesmo tempo, metafórica de independência. Ele sabe que não há como reverter o quadro de influência estrangeira no istmo, entretanto, sabe que se não apostar na vontade de ser livre, seu país desaparecerá do mapa. No Panamá de Ríos tudo é real porque tudo é literário. Afinal, não é porque a alienação induzida prepondera que se deve desprezar a valorização da consciência.

Erguida em plataforma literária, enquanto é abalada em seus aspectos ecológicos, políticos e sociais, a nação multiétnica panamenha existe e ninguém pode dizer que não. Neste aspecto, Rios relata em suas memórias histórias de rupturas na dramática linearidade da impotência coletiva panamenha diante das armas e do poder econômico dos países que, por vê-lo um país franzino, o escolheram como travessia comercial e de interesses de guerra.

A fatídica realidade de ser um importante ponto da geopolítica mundial limita os panamenhos a viverem situações bastante particulares. Por isso, a fuga dessa condição de dominado só encontra passagem segura na criação literária. Mas para ter uma literatura vigorosa e sincera foi necessário ir aos limites da ação política. Os autores do Panamá literário são os verdadeiros políticos do istmo mesoamericano. Eles contam uma realidade experimentada e permeada de expectativas de transposição de angústias e de fatos heróicos, como foi o caso das bandeiras panamenhas fincadas pelos estudantes liderados por Rios e por outros companheiros na zona proibida do Canal, em pleno domínio dos Estados Unidos.

Agir e se descrever é um ato de produção de auto-reconhecimento existencial e de transgressão à inexorabilidade histórica através do estabelecimento de uma comunicação do presente com o passado e com o incitante deslumbrar do futuro. Armados com palavras, o exército de Ríos se apropria do Panamá em um plano que não pode ser saqueado, que é o da criação humana. É assim que o mundo real aparece com todos os seus relevos na superfície das memórias de Ricardo Ríos.

Dizer é uma forma de poder. Pelo menos é uma possibilidade de descobrir cumplicidades, de ser lido mais de uma vez e de ser reescrito por cada novo leitor. Ríos luta para ver seu país mais humanizado, mais ardente culturalmente e privado da ingestão, sem metabolizar, do modo de vida invasor. Sua missão é aumentar a durabilidade das lembranças lançando palavras que, se não resolverem, pelo menos serão mais dignas e melhores do que a omissão e o silêncio. E faz isso por acreditar que escrever é o gesto mais libertário do ser humano.

Sem uma história oficial de país muito agradável para contar, Ricardo Ríos recorre à literatura para fazer existir o lugar que ama. As letras panamenhas encarnam a história de uma vulnerável nação, mas sem qualquer vergonha de suas frustrações e ilusões. Para o professor Ríos, como é carinhosamente conhecido, a literatura é o grande espelho dos acontecimentos, onde silêncios e segredos são relevados na proclamação da universalidade possível.

Ao nos despedirmos, ele me presenteou com o outro livro que carregava, intitulado “La calle del espanto” (a rua do espanto), dizendo que se tratava da obra de um autor panamenho um tanto quixotesco, chamado Richard Brooks, meio barroco e meio pós-moderno. Tinha um ar espirituoso e fantasioso ao me entregar a publicação. Não desconfiei de nada. Agradeci e só depois, quando fui ver o livro com calma, é que percebi que Brooks é o pseudônimo do próprio Ríos, utilizado para seus escritos contestatórios “loucos”, de fina alegoria e de sarcástica crônica urbana.