Pedagogia da diversidade
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 10

Domingo, 30 de Março de 2003 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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O que mais me constrangia quando eu era garoto e ficava em recuperação na disciplina de religião era o fato de ficar sozinho, sem outros colegas para dividir aquelas prolongadas horas de “castigo”. Lembro da dona Altair, calmamente sentada no birô, emoldurada por um longo e verde quadro-negro, e eu, propositadamente sentado na última carteira de uma sala de aula vazia, com o olhar vadiando janela afora. Separados pelo silêncio. Aula de religião era aula de catolicismo. A bem da verdade, sempre me senti uma pessoa condescendente com a sublimação da vida e esses ensinamentos foram e são importantes para mim. Mas era incômodo saber vagamente da existência de outras expressões religiosas e ter que estudar apenas a doutrina e os rituais de uma delas. Na escola deveríamos desenvolver a noção de pluralidade na significação do sagrado.

Assim como a religião, outra disciplina que me causava muito desconforto na vida escolar era educação artística. Talvez, ironicamente, porque sempre gostei de arte. Os professores dessa disciplina ministravam aspectos da área artística ligados a vivência de cada um. Quando provinham do teatro, o foco era teatro; quando atuavam no campo da música, das artes plásticas, da dança, “ensinavam” música, artes plásticas ou dança, e por aí desandava a minha inquietação. A disciplina até mudou para arte-educação mas parece que este problema ainda é bastante acentuado. Ao pensar sobre a importância da arte no refinamento dos seres humanos, recordo de uma professora que foi muito importante para mim nessa tarefa de aprender a olhar. Com a dona Terezita transitávamos da história da arte a afoitos experimentos estéticos. A habilidade que ela tinha, de despertar dons e curiosidades, me levou a perceber o quanto a escola deve ter compromisso com o valor da multiplicidade.

As aulas de educação física também carregam ao longo dos anos esse trauma da ausência de profissionais com formação mais integral. É a experiência pessoal do professor que acaba determinando o esporte oferecido pela escola. Nessa associação um tanto lógica, mas sem consistência de sentido, muitas oportunidades são perdidas pelos estudantes que não passam pelo lugar certo, com a pessoa certa. A educação física tem um mundo de possibilidades e de valores indispensáveis à formação de uma vida com equilíbrio. Quando vejo crianças e adolescentes engessados pelos limites que as escolas lhes impõem como resultante da aptidão individual dos instrutores disponíveis, começo a entender as razões que me levaram, já na universidade, a conseguir atestado médico para me liberar da disciplina de educação física.

Mais recentemente, observando alguns efeitos da pressão do mercado sobre as escolas, percebi o quanto muitos de nós, pais, estamos prejudicando nossos filhos acatando modismos e deixando de lado a atenção ao que é mais permanente. A questão da linguagem como estudo da forma de comunicação nas diversas culturas é uma matéria incipiente no currículo escolar. Boa parte das escolas ainda não conseguiu enxergar as entrelinhas das transformações que vêm desenhando uma nova ordem com tendência para a compreensão e respeito à diversidade. Na tentativa de atrair clientes vitimados pela invasão das palavras e expressões anglo-americanas e pelos produtos e serviços que as acompanham, muitos estabelecimentos escolares acabam esquecendo a responsabilidade que têm para com os seus alunos e colocam na vitrine verdadeiras promoções do idioma anunciado como indispensável. A agressão ao conteúdo é tão imprudente que tem “tia” dando a entender para as crianças que o “outro” fala inglês e mora especificamente nos EUA.

O estudo de línguas na grade curricular deveria ser visto como um leque de opções cujo aprofundamento seria feito em cursos específicos e conforme a vontade e a necessidade de cada estudante. Aliás, o ensino no Brasil merecia ser essencialmente pautado pela pedagogia da diversidade. Temos pulsão cultural para esse desafio futurista. Poderíamos dispensar qualquer indesejável experiência dramática para podermos chegar a essa tomada de consciência. Nossas escolas têm tudo para soltar as asas das múltiplas forças de convergência e das contradições da miscigenação. Deixar voar, imaginar, fundar o que realmente interessa e gerar sentido ao que for capaz de contribuir para nos reconhecermos a partir das características que nos proporcionam distinção. Pode parecer contraditório e ao mesmo tempo demasiadamente óbvio, mas a valorização da diversidade só é possível quando se afirmam as semelhanças.