Poe e as torres gêmeas
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8

Domingo, 28 de Outubro de 2001 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Na literatura do escritor norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849) é fascinante como se revela o jogo entre a perfeição de atos cruéis e os reclames da vaidade, ricamente desenvolvido em alguns de seus contos fantásticos. Tenho lembrado bastante desse tipo de conduta focada na exacerbação da natureza humana, nessas semanas que sucedem o ataque às torres gêmeas de Nova Iorque. A despeito de qualquer juízo ou esforço de interpretação do terrorismo, a derrubada das torres e o ataque ao Pentágono transformaram-se instantaneamente no mais virtuoso acontecimento da atualidade. Um fato tão espetacular que, mesmo particularizado pelo elemento surpresa, conseguiu virar história em tempo real, superando assustadoramente os picos de recepção de mídia em todo o mundo, cujo recorde pertencia aos norte-americanos com a Guerra do Golfo, para a qual houve pelo menos uns seis meses de preparação da audiência global.

A recessão norte-americana vinha fermentando um conflito internacional bem robusto para aquecer a venda de armas. Os EUA lideram esse mercado com uma fatia de cinqüenta por cento e muitos dos seus mísseis, que custam individualmente um milhão de dólares, já estavam atingindo o prazo de validade. As provocações chegaram ao extremo. A insegurança no mundo foi crescendo pelo terror causado por ataques especulativos financeiros e outras ações desestabilizadoras dos chamados países emergentes e exterminadoras de nações no processo de globalização da miséria. Este cenário tomou ares da estética grotesca de Poe a partir de duas expressões da vaidade: a exposição da fragilidade do dono da hegemonia mundial e a ocultação deliberada do mentor da ousadia que desnudou essa vulnerabilidade.

A genialidade da investida impetuosa contra os símbolos econômico e militar estadunidenses, revelou um inimigo tão difuso, anônimo e dissociado de qualquer Estado-nação, quanto os grupos de horror dos ataques especulativos. A necessidade de encontrar alguém que pudesse ser capturado levou os norte-americanos a condenarem Osama bin Laden e, por conseqüência, o desolado Afeganistão. Com essa atitude, os EUA criaram as condições de lavar a honra mas, ao mesmo tempo, elevaram o militante talibã ao posto de primeiro mito da era da história ao vivo. Cuidaram de garantir o controle da informação e partiram para o choque tosco. De um lado, a ira dos vingativos norte-americanos, cuja maioria é favorável à pena de morte e, do outro, a revolta de uma gente que parece já não ter mais o que perder, cuja consciência construída tornou-se subordinável à tática da morte encantadora.

A utilização da vaidade nos textos de Edgar Allan Poe acontece principalmente no confronto entre a sensação de genialidade e o impedimento da revelação autoral. Caso não tenha sido Osama bin Laden o “mandante” do crime de Manhattan, fico a imaginar como estaria esse jogo no íntimo do verdadeiro mentor daquela proeza que denunciou concretamente a insustentabilidade do atual modelo geopolítico mundial. Temos muito o que aprender com tudo isso. Tomando como fonte de advertência os contos de Poe, o nosso ego ocidental não suportaria tal anonimato. Morreríamos pela vaidade e nisso não parecemos tão diferentes de quem morre seduzido por maravilhas divinas e suas armas morais. Fui eu, diríamos sem temer o infortúnio, mas não deixaríamos alguém roubar a nossa fama. Mas quem quer que tenha comandado aquele ataque, certamente tem razões acima da individualidade para ficar em silêncio.

Depois do dia 11 de setembro, a maior baixa que os norte-americanos tiveram nessa guerra foi resultado de um efeito visual: mais do que a revelação que Osama bin Laden fez para todo o mundo de que para eles morrer não é um problema, a própria exibição da sua imagem lado a lado com a do presidente ianque, George W. Bush, causou um choque de recepção também sem precedentes na história recente. Independente do tom áspero das suas palavras, o rosto de Bin Laden transmitia paz, tranqüilidade e uma serenidade de fazer horror. Bush transmitia atrocidade, desequilíbrio e um olhar obscuro também de fazer horror. O impacto apertou a censura aos meios de comunicação, mas não apagou a lembrança daquelas duas caras de distinto terror. Está claro que se continuarmos querendo que o outro tome para si os nossos conceitos e objetivos, em nome de hierarquias entre civilizações, estaremos fadados ao antraz do desejo imoderado de ser aceito, como efeito compulsivo e suicida dessa maldição ressaltada no códice nervoso de Poe.