Socorro, socorro! Precisamos de uma sociedade civil! As instituições estão cambaleantes e parece arriscado ser cidadã ou cidadão em um país onde a democracia migra cada vez mais para a superfície, enquanto a qualidade da representação política aprofunda-se vertiginosamente em um lamaçal de poderes fedorentos e tóxicos que desoxigenam o ecossistema da cidadania.

Os avanços das políticas públicas de Estado perdem força quando não se dá espaço à suplementaridade da cidadania orgânica encontrada nas ações sociais desenvolvidas por pessoas que acreditam no cuidado com a humanidade e com o meio ambiente, associando o indivíduo à própria prática de direitos para a promoção da qualidade do viver.

Não existe sociedade civil criada de cima para baixo, assim como não existem árvores frondosas sem raízes fincadas no solo. A cultura é o solo da cidadania orgânica, e essa cidadania, que resulta da sedimentação dos efeitos da experiência humana em movimento emancipatório, gera os húmus onde pode germinar a sociedade civil.

Normalmente os políticos temem a cidadania orgânica. É como se o poder só pudesse existir com a cidadania amarrada, manipulada, controlada. Daí a nossa carência de lideranças de fato. Essa vontade de evitar o florescimento de culturas cidadãs reflete fragilidades e inseguranças predominantes no jogo político, mas nem por isso significa que será sempre assim.

A permanência da cidadania orgânica em um cenário de cidadania analógica ou mesmo de cidadania digital é bem complexa porque, para ser adubada, a existência da sociedade civil requer relacionamento entre autônomos, e não entre superiores e inferiores, mandantes e subordinados. A política está estruturada para falar de cidadania, mas não para promover a cidadania, como se a política fosse apenas dos políticos.

“Fantasmas da esperança” (2018), pintura alegórica da artista visual carioca Marcela Cantuária. Foto: Vicente de Mello

As políticas públicas de cidadania orgânica existem desde sempre, como resultantes de fatores estabelecidos pelo espírito gregário oriundo das lutas pela sobrevivência. Em nada essas iniciativas de indivíduos e grupos entram em choque com os programas governamentais que visam assegurar os direitos conquistados pela sociedade.

Entretanto, ao invés de serem incentivadas, essas movimentações da coletividade são muitas vezes neutralizadas ou cooptadas por governantes, temerosos do que pode estar alheio ao seu controle, e por especialistas, que só conseguem valorizar o que propõem. Via de regra, esses detentores de poder descartam a vitalidade da cidadania orgânica, presente no fluxo, nas trocas e nas experiências compartilhadas.

Em que pese o descompasso que há entre o tratamento dado às políticas públicas cidadãs e às oficiais, a jornada da cidadania orgânica segue na marginalidade da diferença e da interdependência. O campo mais fértil para esse exercício político solidário é a cultura, por ser esta a maneira como nós humanos interferimos no lugar em que vivemos, plantando e colhendo sentidos na relação com horizontes e cercos montanhosos.

Tudo o que acontece na Terra, mesmo os eventos mais terríveis das tantas formas de escravidão e servidão que marcam o poder e a riqueza em todos os tempos e continentes, sedimenta a cidadania orgânica, seja por revolta ou candente paciência. Ela está na comoção e na indignação contra racismo e preconceito, violência de gênero, destruição de povos originários e devastação de florestas.

Isso tudo sinaliza para o crescimento das manifestações de cidadania orgânica em todo o mundo. Mesmo as pessoas beneficiadas pelas desigualdades haverão de perceber que não vale a pena morrer miseravelmente abraçadas à riqueza que acumularam. Do modo que está, a política consome a cidadania orgânica… e sem cidadania não há sociedade civil… e sem sociedade civil restam apenas as negociatas de poder.

 

Fonte

https://mais.opovo.com.br/colunistas/flavio-paiva/2023/05/29/politicas-publicas-de-cidadania-organica.html