Postal de Havana
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8

Terça-feira, 14 de Setembro de 1999 – Fortaleza, Ceará, Brasil

Artigo em PDF

Recebo o cartão-postal de um velho amigo cubano, parabenizando-me pela passagem do Dia da Independência do Brasil. Fiquei meio sem saber como ler aquela mensagem. Irrompi-me de uma imensa necessidade de contemplação. Como quem tenta acariciar a memória, observei a face ilustrada do cartão, perscrutando cada detalhe da foto da estátua de mármore branco do poeta José Martí, localizada no Parque Central de Havana. Estivemos juntos naquela praça há mais de dez anos. Ele não conhecia (nem conhece ainda) o Brasil, mas demonstrava muitos encantos pela natureza e cultura brasileiras. Os cubanos sentem-se nossos irmãos e, para nós que tivemos a oportunidade de conhecê-los de perto, a recíproca é especialmente verdadeira.

A sensação que senti nos ares de Cuba foi a de estar em um lugar povoado de gente de verdade, com sentimentos reais, conflitos manifestos e, principalmente, um baita sentido de nação. Em contrapartida, pela insurgência de não se submeter à ideologia do consumismo norte-americano, parecia que a tragédia de Numância poderia abater-se sobre a Ilha a qualquer instante. Os numantinos eram povos celtiberos que se negaram a tolerar o domínio dos romanos, no século II a.C. Fizeram o juramento de não se entregarem vivos. Resistiram ao isolamento, a impossibilidade de acesso a alimentos e a muitas batalhas mas, quando pressentiram que não dava mais, incendiaram a própria cidade e seus espíritos indomáveis sumiram com as chamas e Roma não venceu, pois ninguém conquista ruínas. Hoje, quem passa na cinematográfica região de Soria, na Espanha, pode ver os emblemáticos vestígios arqueológicos de Numância.

Retomo meu foco para o cartão-postal de Havana e fico pensando na fragilidade espiritual da nossa independência e suas tradicionais paradas militares sem elã. As forças armadas brasileiras, inexplicavelmente, sempre sinalizaram grande atração pela pátria, mas nunca demonstraram muito apego por nossa gente. A data de 7 de Setembro simboliza essa representação miúda, distante de um sentimento de altivez nacional. Nos últimos cinco anos o Grito dos Excluídos vem temperando um pouco a festa com convicções populares. De qualquer forma, não é um evento que me levaria a escrever para alguém felicitando pelo Dia da Independência. A essência dos nossos desejos enquanto nação contribui muito pouco para essa atitude. O fato histórico do rio Ipiranga não representa uma ruptura com os velhos nem com os novos sistemas coloniais.

Os cubanos construíram uma cultura da independência, alimentada pela força da educação, saúde, esporte e pelas artes. O auto-respeito chegou a superar a dor da fome biológica forçada. Não é nada fácil suportar quatro décadas de embargo comercial determinado pelo país mais poderoso do planeta, durante todos esses anos. Haja integridade e paixão revolucionária. Cuba é um estado de espírito social que vive em constante estado de guerra. O comandante Fidel, entre erros e acertos, é uma indiscutível lenda do século XX que, a apenas 150 quilômetros de Miami, vem escapando da perseguição letal de quase uma dezena de presidentes estadunidenses.

Kennedy, Lyndon Johnson, Nixon, Gerald Ford, Jimmy Carter, Reagan (duas vezes), Bush e Bill Clinton gastaram toda o maquiavelismo da CIA (Central de Inteligência Norte-Americana) para eliminar o líder cubano e só conseguiram fortalecer a marca do mito. Patrocinaram invasões armadas, expulsaram arbitrariamente Cuba da OEA (Organização dos Estados Americanos), tentaram envolver o governo cubano no senão do tráfico de drogas, escândalos sexuais e bancam estações de rádio e televisão, com o nome de José Martí para, através das ondas da emotividade, levar aos lares cubanos ofertas de oportunidades de sucesso individual e de consumo de raridades, caso o povo se disponha a derrubar o governo. E os cubanos até já poderiam ter feito isso. Muitos estão cientes que Fidel Castro já cumpriu o seu papel, mas respeitam os seus inoxidáveis cabelos brancos.

A mais recente tática ianque, na tentativa de comprometer o ambiente de cumplicidade da Ilha, é descobrir maneiras de fortalecer o poder econômico do povo cubano, deixando aparentemente de lado o regime castrista. Com autorização da Casa Branca, há pouco menos de dois meses chegou a Cuba a primeira missão comercial norte-americana para avaliar as possibilidades de negócios em Havana. Caso essa ação apresente indicadores de sucesso, será muito simpático da parte do governo dos Estados Unidos, aliviar o bloqueio e esperar a estratégia funcionar na fermentação interna. Para as empresas será um desafio cheio de benefícios. Afinal de contas, é uma vantagem rara no mundo contemporâneo trabalhar com pessoas educadas para a vida em um país com saúde pública exemplar. No que vai dar é um inócuo exercício de profecia ao qual prefiro não me arriscar.

Olho o cartão com a imagem de José Martí, carregada por um grupo de cubanos perplexos com a esperança, esculpidos na composição do pedestal de 18 metros. Seu braço direito levantado com a mão aberta, sugere horizontes acompanhados por olhares certeiros da bravura. A Revolução Cubana, de 1959, introduziu o marxismo, com a habilidade de não entrar em choque com a alma martiana. Onde vacilou, cometeu erros ainda não cicatrizados. Quando Sílvio Rodriguez canta que seu amor não é amor de mercado, sintetiza o desejo de expansão da solidariedade cubana, consolidada por todo este século da sua história de lutas. A resignação ao padrão civilizatório de segunda categoria determinado por parte da Europa e pelos EUA aos demais povos do mundo, certamente anima os amigos cubanos a espalhar parabéns no dia da suposta Independência de outras nações.

José Martí era mais um espetacular pensador prático do que um filósofo. Armado da máxima de que a melhor maneira de dizer é fazer, esgarçou as fronteiras do espírito e teve seu pensamento assimilado ao ponto de dar corpo cultural à dignidade cubana. Foi ele quem primeiramente identificou o perigo que a não-cultura dos Estados Unidos traria para o continente americano. No final do século XIX, a luta pela independência de Cuba do domínio espanhol aconteceu simultaneamente com o oportunismo norte-americano de conquistar a maior Ilha do Caribe. Em 1898, a Espanha foi derrotada, mas os EUA garantiram sua ocupação militar. Por repetidas vezes a violência da ocupação aconteceu.

Como mentor político da formação da dignidade cubana, Martí reagia com veemência às inúmeras tentativas de anexação de Cuba aos Estados Unidos. Em discursos, conclamava os conterrâneos a não se humilharem diante de um invasor que negava a sua capacidade, insultava sua virtude e desprezava seu caráter. Mesmo reconhecendo e respeitando os motivos dos que defendiam a anexação com o argumento da busca do progresso e da modernidade, não se cansava de ressaltar que “aqueles que lutaram na guerra (…), que ergueram com o trabalho das mãos e das mentes um lar virtuoso no coração de um povo hostil (…) não necessitam anexar a Ilha aos EUA”. No mesmo documento, publicado no Brasil pela editora Hucitec na antologia “Nossa América”, José Martí clarifica sua fala, argumentando que honestamente não acredita “que o individualismo excessivo, a adoração da riqueza e o júbilo prolongado de uma vitória terrível, estejam preparando os Estados Unidos para ser uma nação típica da liberdade”.

A mão do herói da independência cubana traduz no cartão-postal que aprecio em minha reflexão, o gesto da sua grandeza ao iluminar caminhos. Ele não era xenófobo. Apenas ao contribuir para a criação de um país novo, desatrelado de tutelas coloniais, sonhava em ver respeitados os valores locais, sem perder a vitalidade que chegava pelo mar. Se tivesse que escolher entre difundir a cultura inca ou a grega, optava pela que florescera no continente encontrado. “Enxerte-se em nossas repúblicas o mundo, mas o tronco terá que ser nosso”, era o princípio do seu entusiasmo pela educação, pelos professores ambulantes que fizeram o desenvolvimento incessante de tantas mentes camponesas postas a pensar.

É de dentro dessa história toda que recebo os parabéns pela data da Independência. Faz sentido. Sinto-me honrado. Espero que no final do século que chega daqui a pouco, nossos descendentes possam ter a honra de desejar congratulações pela passagem do Dia da Independência de algum amigo distante. Por enquanto, sinto vontade de aplaudir Cuba pela coragem do triunfo nessa tensão histórica secular. Os norte-americanos podem se vangloriar das suas conquistas bélicas e econômicas e continuar destruindo vidas em nome da ambição desmedida pelo poder, mas, pela ótica do coração e da dignidade humana, o século das Américas foi cubano. Impossível negar. Dá para ver a olho nu, em um simples postal de Havana.