Premiações da esperteza
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 21 de Agosto de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Acredito que quando as pessoas têm a oportunidade de serem honestas elas preferem serem honestas. Em situação normal, o estresse da desonestidade não pode ser da naturalidade de ninguém. Porém, a premiação constante dos que praticam atos indecentes tende a fazer valer o ditado popular “água mole em pedra dura tanto bate até que fura”. Noto que dentre os comportamentos indignos que se vê no cotidiano, o da esperteza é o mais explícito e um dos mais disseminadores da idéia de que ser honesto não vale a pena.

A propósito, deveríamos chamar de falsos espertos os que praticam o artifício da malandragem na busca permanente de vantagens individuais, já que o efeito de sua astúcia acaba sendo tão prejudicial ao todo que, direta ou indiretamente, também o atinge. Originalmente a palavra esperteza está associada à inteligência, mas a dinâmica da língua, atendendo aos vínculos que se estabelecem entre as palavras e o que elas significam, mudou o sentido de esperteza para designar a ação de alguém que consegue se sair bem como fraudador.

O que é mais preocupante diante do avanço da esperteza em nossos dias é o fato de muitas das pessoas, mesmo as mais dispostas a serem honestas, não perceberem que são coniventes com os espertos ao, de alguma forma, premiar suas práticas. Coisas simples, como o médico que pergunta ao paciente se ele quer pagar com nota ou sem nota fiscal. Estando atentos à esperteza desse tipo de indivíduo, a primeira reação nossa deveria ser imaginar se deveríamos mesmo entregar os cuidados com a nossa saúde a quem age assim.

Por esses dias vi um programa de televisão chamado “MTV na Rua”. A apresentadora, Penépole Nova, se mostra como uma pessoa esperta. A retórica do programa é a de dar “voz e espaço para a audiência falar o que quiser”. Os adolescentes que participam adoram. Naquela ocasião eles discutiam os biocombustíveis. Com seu disfarce de escolada, a apresentadora induzia descaradamente os entrevistados a reforçar os argumentos do cartel do petróleo e dos especuladores de commodities de que os combustíveis ecológicos são os vilões da crise de alimentos.

Usar inescrupulosamente a juventude para, sem os elementos necessários para fazer um raciocínio balizado, se pronunciar sobre uma complexa questão geopolítica e econômica internacional, me parece um pouco demais. Mas Penélope Nova não deve achar e espertamente faz as manipulações que agradam os interesses da sua produtora, sediada na Times Square, em Nova Iorque, a mesma que é dona de um dos mais sociopáticos dos canais infantis, o Nickelodeon, onde até as fadas são furiosas. E ela é obrigada a dizer “eme ti vi” e não “eme tê vê”.

A doutrina da esperteza está presente em grande parte dos programas importados pelos canais dirigidos à infância. No Cartoon Network a campanha institucional “A gente faz o que quer” é uma prova de que os produtores e patrocinadores desse canal acham mesmo que são espertos o suficiente para poderem fazer o que quer. Felizmente, neste caso específico, o Projeto Criança e Consumo vem pressionando o Ministério da Educação a fazer alguma coisa com essas vinhetas, que colocam carismáticos heróis de animação roubando supermercados, colocando spray de inseticida no cabelo e até patrões andando montado nas costas de empregados, sob a proteção do slogan “A gente faz o que quer”.

Temos exemplos a rodo sobre a premiação da esperteza. Todo dia inúmeras pessoas, umas culpadas e outras inocentes, umas agressivas e outras passivas, são algemadas e presas e expostas publicamente antes de julgamento. Mas foi só um banqueiro, envolvido em cabeludos crimes financeiros, ser algemado e sua imagem posta “em situação constrangedora”, por ter sido reproduzida e transmitida pela mídia, que rapidamente ascendeu o debate sobre normatização do uso de algemas. É muito improvável que seja apenas coincidência o fato de o Supremo Tribunal Federal ter tomado, exatamente nessa circunstância, a decisão de restringir o uso de algemas em ações policiais.

No mundo da iniciativa privada a premiação da esperteza também é uma areia movediça na qual muitas empresas estão afundando. Os executivos mais valorizados hoje em dia são aqueles que apresentam currículos de alta volubilidade. Normalmente essa característica aparece com destaque em trechos que falam de passagens pelas empresas tais e tais e tais. Para quem contrata, essa inconstância significa experiência diversificada e, para quem é contratado, trata-se de mais uma oportunidade de demonstrar novidades espertas que possam virar “cases” e ganhar prêmios entre os seus pares, até o próximo recrutamento de algum caçador de executivos, conhecido no mercado como headhunter.

Esse comportamento de volubilidade se reflete na forma como as empresas têm tratado clientes e consumidores. A retórica da fidelização está na boca de todos, mas, na prática, o cliente fiel e o consumidor que criou vínculos com determinadas marcas, produtos e serviços são tratados como uns tolos, que caíram no conto do vigário. As bonificações, os prêmios, as ofertas especiais estão sempre dirigidas a quem está abrindo uma nova conta no banco, fazendo uma assinatura qualquer, comprando algo pela primeira vez ou ao sabor das ofertas. Assim, todas as forças de comunicação mercadológica e de benefícios são, via de regra, dirigidas à conquista de clientes e de consumidores volúveis.

Na política, meu-deus, a esperteza já virou pleonasmo. Infelizmente. Estamos em pleno período eleitoral e basta observar a oferta de indivíduos que se candidatam com o simples artifício de faturar a grana das contribuições ou para negociar lotes dos votos que conseguir demonstrar que consegue angariar em seu nome. Veja que não estou me referindo a quem sabe que não pode ganhar, mas entra na luta somando votos para seu partido ou contribuindo para a melhoria do pensamento crítico do eleitor. Dos muitos espertos que se valem dos instrumentos democráticos para se dar bem, esses agiotas eleitorais estão entre os mais degradantes. Mas são premiados pelos partidos que lhes dão legenda e pelas pessoas que, de alguma maneira, contribuem com essa prática escusa.

A premiação da esperteza vai do consumo mercantil da fé à aquisição de imóveis construídos dentro dos mangues e nas faixas de marinha. Mas é no trânsito que todo dia a gente colabora com a inutilidade da esperteza. Quando os espertos fecham o cruzamento e usam deliberadamente a rua como vitrine para se exibir e nós buzinamos ou demonstramos irritação, estamos premiando uma infeliz opção. É isso que eles querem ao esnobar superficialidades. Nesses casos, a indiferença tem sido muitas vezes mais desconcertante e mais eficaz do que a punição dos infratores das regras de convívio social. Até porque se essa gente começar a ser multada, os espertos que contaminam a justiça, poderão decidir pela restrição ao uso de multas no trânsito. E essa via só leva ao caos.