Quatrocentos anos de quê?
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 10

Domingo, 13 de Abril de 2003 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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A aventura de Pero Coelho no Ceará do princípio do século XVII daria um belo filme épico. Ele era cunhado de um importante explorador incentivado, com quem morava na “Parahyba”. O Brasil vivia os efeitos do confuso domínio do rei Feipe III da Espanha e II de Portugal. Coelho conseguiu apoio do então governador-geral Diogo Botelho, para montar um exército com a finalidade de explorar os rios cearenses e expulsar alguns franceses que estavam instalados em arraiais na Serra Grande da Ibiapaba.

Martim Soares Moreno, que posteriormente viria a se tornar personagem do romance “Iracema” de José de Alencar e a ser considerado fundador do Ceará, participou dessa jornada. Em autobiografia, datada de 1618, Moreno revela o xis da questão: “sendo de pouca idade passei ao Brazil por soldado em companhia do Governador Diogo Botelho, logo que cheguei fui com o capitão Pero Coelho de Sousa a descobrir e conquistar a provincia de Yaguaribe, Seara e Mel Redondo servindo de soldado, onde tivemos guerra com aquelles Índios que eram infinitos e tinham muitos franceses em sua companhia”.

Muitos desses documentos foram reproduzidos em textos de historiadores e políticos cearenses em uma edição especial intitulada “Commemorando o Tricentenário da vinda dos primeiros portugueses ao Ceará – 1603 – 1903”, editado pela Typ. Minerva sob os auspícios do Dr. Pedro Borges, presidente do Ceará cem anos atrás. É isso mesmo, naquele tempo os organizadores do evento tiveram a sensatez de deixar claro que se tratava de 300 anos “da vinda dos primeiros portugueses ao Ceará”. Concordando ou não com a solenização deste tipo de acontecimento histórico é fácil reconhecer que houve honestidade e transparência no propósito.

Estamos no ano de 2003 e existe uma preocupação manifesta de grande parte da humanidade no sentido de mudar o paradigma da relação de autoridade e dependência entre os povos. As manifestações contra o genocídio anglo-ianque no Iraque e pela paz são um bom exemplo desse desejo. Há cinco anos, quando Portugal debutava na União Européia, foi feita a Expo 98, tendo como tema central a relação dos seres humanos com os mares, desde a utopia que levou ao aprendizado das navegações à necessidade de proteção dos ecossistemas oceânicos. Bem diferente do século anterior quando os portugueses expuseram verdadeiros zoológicos humanos a título de valor evocativo pelas conquistas ultramarinhas.

O próprio colonizador não quer mais aparecer como colonizador. Os tempos mudaram, as variáveis políticas, econômicas, históricas e culturais atingiram outros patamares de grandeza, percepção e atitudes. Neste cenário de transformação do olhar vê-se estranhamente uma campanha de comemoração discricionária de 400 anos do Ceará. Algo que, dentre outros espetáculos, pretende literalmente desfilar o complexo de inferioridade de boa parte da nossa elite no sambódromo da avenida Marquês de Sapucaí. Quatrocentos anos de quê? A história e a cultura cearenses estão sob a mira dessa agressão conceitual que certamente deixará seqüelas simbólicas na nossa compreensão do que somos e do que queremos ser.

A façanha de Pero Coelho e seus soldados não é um bom marco de fundação. Depois de dizimar uns tantos “homúnculos tapuyos” em terras cearenses e de acabar com a festa francesa na Ibiapaba, foi à Paraíba buscar reforços para a captura e venda de nativos. O negócio foi tão bom que ele vendeu até os “naturaes” com quem havia contado nos combates. Como que para compensar, foi traído pelos comparsas e teve que se deslocar à pé da margem do rio Jaguaribe até Natal, numa saga de fome e sede em que perdeu a mulher e o filho. Conseguiu embarcar para a Espanha, para onde seguiu na vã tentativa de conseguir uma recompensa pela expulsão dos franceses de Mel Redondo. Terminou os dias solitário e pobre vagando em plagas portuguesas. É realmente uma história curiosa que merece ser conhecida e analisada, mas nunca tomada como a primeira referência do Ceará.

Essa espécie de fado cearense tocado em exagerados festejos de supostos 400 anos é a forma mais cínica e atualizada de, em nome do crescimento econômico, reforçar a sensação coletiva de que ainda não é hora de sair do pelourinho. Nada conta o fato. Tudo contra o foco. Nada conta os portugueses. Tudo conta a digressão apologética a qualquer marco colonizador. O autóctone cearense é reconhecido como um dos povos do Brasil profundo que mais repeliram bravamente aos assaltos dos conquistadores. Um espírito de inquietação antropológica que seguiu palpitando no coração caboclo a paixão pela liberdade. E com certeza não há caminho para a liberdade que passe pela subserviência do olhar.