Que belo disco, Manassés!
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 6

Domingo, 25 de Novembro de 2001 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Algumas obras merecem ser admiradas com a alma em silêncio expressivo. O CD “Revendo Amigos”, que Manassés de Sousa lança a partir do mês que vem, é desses que sugerem audição calada. É um disco de imagens sonoras cortantes, metaforicamente sublevado em nossas veias nordestinas, latinas e alcalinas, como vitalizador de funções estéticas. Seu fundo narrativo revela-se em harmonia solar. No mundo do culto ao efêmero em que vivemos, ousa ser atemporal e não descartável. Feito para ficar e dar contexto ao instante.

Manassés se exprime, como se saísse de si mesmo, para ser visto por dentro na incandescência da sua virtuosidade. Das onze faixas, assina sete. O instrumentista abre o compositor à inspeção, como quem deseja mostrar mais e mais a sua capacidade de perceber e traduzir o mundo. Faz isso sem floreios delirantes e sem qualquer problema de inteligibilidade. A emoção é clara e à base de sentimentos intensos. Tem estilo nascido nos íntimos segredos da viola e na simplicidade do menino de Maranguape, filho do finado Antônio Lourenço, misto de agricultor e caixeiro viajante. Ao pai e aos filhos Jorge, Luisa e Lucy, Manassés faz a dedicatória do disco.

A paisagem sonora de “Revendo Amigos” revolve lembranças naturais e culturais plenas de sentimentos. Com remo de slide na viola, trafega pela correnteza do “Rio Formoso”; em dedilhado bucólico, faz vibrar o seu “Passeio no Parque”; no subtexto da conversa de guitarras portuguesas, encanta “Lucy”. Segue nesse sentido. Cada composição tocada na própria trama de significados, como garrancho ficando verde quando chove no sertão. No trabalho de Manassés, a arte tem como medida a emoção humana. Por isso flui testemunhal e confessional, entre invocações de equilíbrio reflexivo. Não quer compreender, nem justificar. Não quer ser nem mais nem menos fundamental. Colhe sensações e remete impressões enraizadas e antenadas pela força da terra — fonte da seiva — e pelo magnetismo do ar — recreio dos polens.

O disco “Revendo Amigos” manifesta na passagem pela criação de outros autores, um aguçado senso de unidade na diferença. Esse pesponto de afinidades artísticas é todo manufaturado pelo acochado “Forró Brasil” (Hermeto Pascoal), ao som de pote no fuzuê de “Pisa na Fulô” (João do Vale/E. Pires/Silveira Jr.), no timbre placentário de “Terra” (Caetano Veloso) e, principalmente, na antropologia comparada de “Fado Tropical” (Chico Buarque/Ruy Guerra). Dá uma estranha saudade de um país que se esvai, pulsando de amor vão, entre cores e dores que maltratam o coração. A estética de Manassés desfruta de elasticidade, formando um composto melodioso, harmônico e rítmico, gravado com muita técnica e apuro profissional.

O disco tem ainda a felicidade de partir do conceito agregador da amizade. Rever amigos é uma necessidade impreterível nesses dias de apartação globalizada. Esse propósito reúne todo um adensamento de laços simbólicos profundamente motivador. No jogo de linguagem dos instrumentos, nota-se a satisfação transpirante dos músicos convidados por Manassés. São dezesseis amigos e não dá para colocar simplesmente alguns nomes e fechar a lista com o tradicional “dentre outros”. Hoto Jr., Marcos Suzano, Pantico Rocha, Aroldo Araújo, Mingo, Fernando Moura, Zé Américo, Jamil Joanes, Adelson Viana, Luís Miguel, Ítalo Almeida, Denílson Lopes, Jaques Morelenbaum, Artur Maia, Hermeto Pascoal e Dominguinhos compõem o time de companheiros agrupados na ambiência afetiva do autor.

Entre as vantagens mais visíveis no perfil do CD “Revendo Amigos” está a liberdade de definição que Manassés dispôs para desenvolver a sua obra. Patrocinada pela Coelce, com os benefícios da Lei Federal de Incentivo à Cultura, a produção ficou livre das pressões dos eternos cobradores de idealizações do passado. Manassés pôde, assim, livrar-se de determinados encostos mau agourentos que sempre insistiram em aprisioná-lo no fundo difuso do palco. O seu destemor na luta pela boca de cena do palco principal da MPB, é outro valor digno de reflexão na trajetória desse músico de forma e conteúdo. Trata-se, portanto, de um refinado disco de autor, caracterizado pelo clima agradável e pela licença de reciprocidade renovadora que só as amizades maduras permitem acontecer.

Serviço: o CD “Revendo Amigos”, de Manassés de Sousa, tem lançamento previsto para os dia 6, no Largo das Dores, em Sobral; dia 7, no anfiteatro do Centro Dragão do Mar; e dia 9 de dezembro, no Teatro Municipal de Maranguape, com preço de capa a ser definido.