O escultor indígena Paulo Apodonepá perguntou-me há pouco mais de um ano como percebo os caminhos para a interação entre não indígenas e povos originários na atualidade. Esse é um tema que me deixa desnorteado por conhecer tão pouco as expectativas dos povos da floresta e por achar tão repulsivo o tratamento que estes vêm secularmente recebendo do dito mundo civilizado.

Diante da minha explicação enviesada, ele me convidou para passar uns dias na aldeia Águas Correntes, no Mato Grosso, onde mora com a artesã Neulione e o ‘filho José’, um macaco adotado que gosta de andar em garupa de moto. Para me motivar ainda mais, falou que aquela comunidade estava construindo uma aldeia própria para visitação, na qual seria desenvolvido um programa de turismo pautado no equilíbrio e no respeito.

Fiquei tentado, procurei me organizar para estar lá nos dias 28 e 29 últimos, quando houve o lançamento do I Cultura Balatiponé em Foco, evento voltado para pesquisadores, autoridades socioambientais, parceiros e potenciais apoiadores dessa experiência coordenada pela Associação Comunitária da aldeia Águas Correntes (ASCOMAC), da qual Neulione é a presidenta. Não consegui estar lá, mas acompanhei o que é possível seguir por trocas de mensagens digitais.

A autonomia econômica tem sido uma das grandes preocupações das lideranças Balatiponé-Umutina. O território onde vivem segue cada vez mais pressionado pelo agronegócio do açúcar e de grãos, pela criação de gado e por madeireiros, sem contar que a região tem um histórico de ataques de posseiros, seringueiros, garimpeiros, caçadores profissionais e todo um ciclo dominado por exploradores de uma planta medicinal chamada poaia.

Indígena Balatiponé na Aldeia Temática de Águas Correntes. Victor Photo Studio / ASCOMAC.

O território Umutina padece do sufocamento comum às reservas indígenas brasileiras: uma espoliação provocada pelo avanço ruralista que inventa ‘marco temporal’ espúrio e argumento de que ‘o agro é pop’ para desmatar e retirar os direitos das gentes originárias. Isso tem gerado uma outra grande preocupação, que é a distribuição espacial de aldeias e moradias integradas, a fim de assegurar a ocupação.

Com área total de pouco mais de 28 mil hectares no bioma Cerrado e em zona de transição para o bioma Amazônico, esse território, banhado pelos rios Paraguai e Bugres está localizado no Mato Grosso, a cerca de 200 km da capital Cuiabá. Embora violado física e simbolicamente, com silenciamento linguístico e decréscimo populacional decorrente de assassinatos e doenças de branco, o povo Balatiponé-Umutina se esforça para reafirmar peculiaridades de suas origens.

É nesse aspecto de reafirmação cultural, fortalecimento territorial e de geração de renda familiar que o programa da ASCOMAC se apresenta. A ação da aldeia temática é projetiva em sua condição reconstrutiva da aprendizagem relacional interna e com não-índios. Por meio dessa estrutura, eles comercializarão sua arte, artesanato e gastronomia, e exibirão danças e esportes preservados, com parâmetros para visitantes definidos com base nos valores da comunidade.

Os Balatiponé-Umutina ficaram conhecidos pela força guerreira na luta contra invasores. Tiveram muitos parentes dizimados e chegaram a ser oficialmente ameaçados de extermínio. Por constituírem uma sociedade matrifocal, centrada na mãe como essência da tribo, ficaram conhecidos também pela rigidez com que evitam a inserção de pessoas de outras etnias e não indígenas em suas famílias. Com essa Aldeia Temática, a rica produção desse povo passa a ter um local para receber visitantes, sem afetar diretamente suas privacidades. É o boiká (arco) de onde parte a ixó (flecha) de um novo experimento vital.

Fonte:
Jornal O POVO