Redesenho do imaginário
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Sábado, 05 de Agosto de 2006 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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A minha curiosidade pelos aspectos da nossa história nunca foi tão aguçada quanto depois que me tornei pai. Percebo em mim uma vontade prazerosa de falar da vida e do mundo em que vivemos para os meus filhos. De falar e de mostrar, para que eles possam ter elementos consistentes à construção das suas próprias experiências. Nessas férias de julho, fomos a Luiz Correia, no Piauí; faixa litorânea trocada com o Ceará, em 1880, pela região de Independência, onde nasci, e Príncipe Imperial, hoje Crateús. Foi uma viagem muito agradável e embalada pelos variados encantos do Delta do Parnaíba.

Em uma das vezes que fomos à Praça da Graça, comprar o Diário do Nordeste na banca, passar no Banco do Brasil e caminhar naquele bem arborizado passeio público, percebi que havia na rua ao lado uma livraria com o nome Harmonia. No primeiro instante fiquei com receio de ser mais um ponto de venda de publicações de auto-ajuda e de outros livros feitos por exclusivas razões comerciais. Temos sido tão bombardeados por simulacros travestidos de boa fortuna que vez por outra nos pegamos em preconceitos desse tipo. Eu estava enganado, a livraria merecia o nome: bem arrumada, tranqüila e com alguns estudantes numa descontraída conversa sobre literatura.

Foi na livraria Harmonia que descobri a existência do livro “No Piauhy, na terra dos Tremembés”, de Diderot Mavignier (independente, 142 p. 2005). A capa me chamou logo a atenção por estampar a reprodução de uma máscara de arte indígena em cerâmica (do acervo da Associação Comercial de Parnaíba) e pelo título fundamentado em adjetivo gentílico. Diderot, 50 anos, é historiógrafo e, como muitos piauienses, fica indignado quando escuta as pessoas fazerem referências ao Piauí, como “terra mafrense”, numa alusão de memória mecânica ao capitão Domingos Afonso Mafrense, que na passagem do século XVII para o século XVIII montou cerca de três dezenas de fazendas de gado bovino naquelas paragens.

Na ocasião, não consegui falar com o autor, mas depois, por telefone, ele me disse, e eu concordo, que a sociedade não agüenta mais viver enganada por uma história baseada apenas na versão dos colonizadores. “Domingos Mafrense foi um exterminador, um matador de índios que tem o seu nome nas nossas escolas”, desabafa. Ao escrever “Na Terra dos Tremembés”, Diderot contribui para o redesenho do imaginário de toda uma parte do Nordeste brasileiro que foi povoada do sertão para o litoral com a intensificação da exportação de couro e das charqueadas.

O livro tem uma série de situações mal resolvidas, embora com sinalizações ousadas e extremamente importantes. Nota-se que é escrito com emoção honesta e desejo sincero de corrigir uma omissão histórica que não tem mais sentido ser prolongada. Quando o autor menciona teses que podem levar a explicações sobre a vida dos habitantes originais da região, antes do período das primeiras invasões européias, seu esforço esbarra nas limitações para pesquisas, viagens e estudos. Cabe ressaltar que também não é nada fácil encontrar bibliografia sobre o tema. Tanto que o autor continua garimpando informações para uma nova edição revisada e ampliada que pretende fazer. Trabalhos assim poderiam ser bem mais aprofundados se tivéssemos uma política de incentivo à nossa etiologia.

Escritos como o de Diderot Mavignier revelam que a nossa alma tapuia não está morta. As oligarquias dos coronéis rurais e urbanos, inacessíveis à justiça, aniquilaram comunidades e mais comunidades nativas e apagaram muitos dos seus traços de ancestralidade. Em “Na terra dos Tremembés” o autor conta da “devassa que se fazia em torno do assassinato de dezenas de índios, cujas cabeças foram exibidas em postes”, onde hoje é a cidade de Amarante. Diante de tamanha crueldade, o coronel João do Rego “procura o juiz, para lhe dizer que não criminasse ninguém, porque ele mesmo era o autor da sangreria”. Essas citações não se reduzem, contanto, a denúncias procrastinadas. Elas se encaixam no contexto da história brasileira, no qual a obra apresenta traços culturais e das figuras lendárias do Piauí.

Diderot trata os Tremembé com o respeito que uma gente forte merece. Uma gente que, mesmo em desigual condições de confronto, teve a audácia de lutar pela liberdade e a coragem de perder. Fala de alguns costumes dessa gente: cultivavam mandioca, milho, feijão, batata, jerimum; usavam arapucas, alçapões, zarabatanas, arcos e flechas para caçar; criavam papagaios, tingiam o corpo, faziam tatuagens, usavam colares de sementes e dentes de macacos, confeccionavam redes de palha, cestas de cipó; usavam flautas de bambu e ossos, maracá de cabaça, tambores de troncos de árvores, trombetas de búzios e eram exímios nadadores, o que levou os colonizadores a apelidá-los de peixes racionais. Chamou a minha atenção o registro de um ritual de inversão bastante emblemático: quando não estavam em pé de guerra, eles recebiam os brancos aos prantos como uma irônica alegria.

A obra do historiógrafo parnaibano narra passagens encantadoras de alguns personagens cinematográficos da história piauiense. A vida de Simplício Dias (1773 – 1829), por exemplo, daria um romance espetacular. Filho excêntrico de um dos maiores comerciantes de charque, sal, couro, sola e de embarcações do Nordeste no final do século XVIII, ele estudou em Coimbra, patrocinou obras filantrópicas da rainha Dona Maria I, avó de Dom Pedro I, passou a freqüentar festas e recepções da Casa Real, recebeu condecorações da Corte e casou-se com uma dama de honra da Rainha. Na Casa Grande de Parnaíba mantinha uma banda de música composta de meninos escravos e nos seus caprichos chegou a presentear o imperador com um cacho de bananas todo de ouro, com pedras preciosas no bico das frutas.

Esse é o lado do Simplício Dias, conhecido como o moço rico de luxo asiático que mantinha comércio direto com Lisboa e possuía quase dois mil escravos. Mas tem a sua fase de ação política, com inclinações democráticas inspiradas em Voltaire (1694 – 1778), filósofo iluminista francês. As posições de Simplício Dias com relação ao Brasil, mesmo influenciadas pelos interesses da Inglaterra, por meio da maçonaria, foram de grande relevância na luta pela Independência, quando se mudou para o Ceará, de onde pagava despesas de guerra, enquanto tinha os seus navios, fazendas e indústrias destruídos. Com a vitória da monarquia, chegou a declinar do convite de Dom Pedro para ser o primeiro presidente da Província do Piauí. Seguia o sentimento nacional que repudiava o autoritarismo de Dom Pedro I, por isso chegou a apoiar as movimentações da Confederação do Equador. O corpo de Simplício Dias foi enterrado na matriz de Nossa Senhora da Graça, do outro lado da praça onde fica a livraria que comprei o livro de Diderot Mavignier.