Relatos sonoros de brasilidade
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Sábado, 15 de Outubro de 2005 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Tem muita gente que acompanha a evolução do País pelos duvidosos indicadores econômicos, sociais e eleitorais difundidos estrategicamente por setores influentes brasileiros e por destacados organismos internacionais. Por mais bem apresentados que sejam esses números deixam sempre interrogações a respeito da forma como são manipulados. Também procuro referenciais nessas estatísticas, porém faço isso mais na tentativa de entender o jogo de interesses de quem os patrocina do que mesmo para assimilar os sinais de pulsão de vida ou morte que pretendem induzir em nós.

A desconfiança no controle e na difusão unilateral das estatísticas, que via de regra cuidam de nos dizer que não valemos a pena, me leva a intensificar cada vez mais a atenção em outros indicadores capazes de sugerir leituras menos viciadas da realidade. Nessa minha atenção paralela normalmente procuro estar antenado nas expressões culturais. E dentro das manifestações da cultura no Brasil, tomo comumente a música como principal sinalizador do nosso índice de qualidade de vida. Compreendo que a saúde de uma sociedade deve ser medida pela escala da sua sustança cultural.

Nas conversas cotidianas e na retórica dos críticos musicais tem sido quase habitual a lamúria de que a música brasileira passa por uma fase de redução de força criativa. Essa noção equivocada resulta das descargas de propaganda abusiva que as multinacionais controladoras do mercado mundial de música e alguns factóides isolados nos aplicam cotidianamente. Os holofotes dos meios de comunicação podem projetar imagens da realidade com seus espetáculos e simulacros, mas não nos levam concretamente à rua onde as coisas acontecem em sua dimensão efetivamente real.

Nina Rodrigues (1862 – 1906), médico que fazia vezes de antropólogo, em seu esforço de interpretação do evolucionismo social já citava a subordinação de grande parte da nossa elite intelectual ao modelo mental europeu e anglo-americano: “aqui se sabia de todo mundo, menos de nós”. Um século depois dessa primorosa observação podemos dizer que avançamos bastante na compreensão do Brasil, embora ainda fortemente olhando de fora para dentro. Mesmo a música brasileira tocada abundantemente no País, tem repertório e intérpretes escolhidos sob jurisdição das corporações estrangeiras ou apadrinhamentos políticos localizados. Neste aspecto, o resultado não poderia mesmo ser diferente de uma sensação de empobrecimento. Deixamos de ser parte intrínseca do nosso próprio cabedal de composições para nos tornar meros consumidores ativos e passivos de algumas bem-acabadas falsificações do que não somos.

Diante de tudo isso, alegra-me poder ouvir gravações como as que estão sendo lançadas pelo programa Rumos Itaú Cultural, através dos benefícios da Lei Federal de Incentivo à Cultura. Trata-se de uma caixa com sete cds e cem músicas de todas as regiões do Brasil. Duas faixas para cada um dos 50 artistas ou grupos com composições colhidas em uma viagem de mais de 30 mil quilômetros por todo o território nacional. Do Ceará temos indiretamente a participação do compositor Eudes Fraga com “Urubu, mestre do vôo”, na interpretação da cantora paraense Simone de Almeida. O estojo contém ainda dois cds de audioficções, com dezoito peças literárias dirigidas a locução. Essa caixa, cheia de indicadores que explicam a nossa vitalidade cultural, já pode ser comprada em lojas especializadas e até adquirida gratuitamente em caso de instituições sem fins lucrativos, emissoras de rádio, universidades e sites de cunho educacional, cultural ou comunitário (www.itaucultural.org.br).

O que mais me agrada nesse tipo de produção é que mesmo com toda a acuidade da comissão de seleção, o conteúdo não é apresentado como o “melhor do Brasil”, apenas como relatos sonoros de brasilidade. Sem qualquer condicionante de motivo, gênero, estilo ou ritmo. Uma mostra do que está sendo feito nos diversos campos de radiação estética da música pop, instrumental, recitada, eletrônica, mpb tradicional, aborígine, enfim, da música plural brasileira. No lugar da persuasão pela impostura da perfectibilidade dos hits, a noção dos valores e concepções de prática corrente na fenomenologia de um País multisonoro e único.

A coletânea “O Brasil em 09 CDs” contém vibrações reais de um País admirável em originalidade e capacidade inventiva autônoma. Faixa por faixa os cds organizam passagens ao que se toca e ao que se canta como parte do que somos. Nessa oportunidade de conexão com a vitalidade das nossas próprias emoções as músicas não são novas nem velhas, são simplesmente música. Em uma das faixas o compositor goiano Juraíldes da Cruz parece sintetizar bem essa questão ao cantar: “Eu pensei correr de mim / mas aonde eu ia eu tava”. Se é música para dançar é dançadeira; se para contemplar é contemplativa; se nasceu de uma paixão é apaixonada… Tocada com enxada, percussão corporal, programação eletrônica ou rabeca, é a vida traduzida em sons e cantos sentidos, curtidos, reverberados pelo vigor cultural da diversidade singular brasileira.

Os cds de audioficção valorizam a produção literária para o rádio, esse veículo que nos acompanha em muitos momentos e lugares como se estivesse “caladinho” na construção da crônica do dia-a-dia. De tão presente nunca é lembrado como merece. As 18 peças selecionadas traçam em prosa e sonoplastia um panorama auditivo das nossas questões sociais, com abordagens sentimentais, bem-humoradas e indignadas. Os relatos sonoros de brasilidade reunidos nas audioficções da caixa do Itaú Cultural, embora em menor escala, reforçam a necessidade de conquista do direito de oportunidade de escutar a si mesmo que vem sendo agressivamente negado à sociedade brasileira.

A cada acesso que temos às manifestações que nos representam, nota-se que de pouco adianta seguirmos nos balizando somente pelos indicadores utilizados para nos convencer de todos os riscos que corremos por existir. Mais do que aprendermos a interpretar o que esses índices econômicos, sociais, político e geopolíticos querem dizer em suas entrelinhas, precisamos aguçar os sentidos para os nossos parâmetros culturais. Estes, mais do que quaisquer outros traduzem o nosso estágio verdadeiro de desenvolvimento. Não estou falando aqui de levantamento de emprego e renda no âmbito da cultura. Isso é economia. Estou falando de sensação de pertencimento, de grau de afetividade para com as nossas referências simbólicas e, principalmente, de aproximação entre o que somos e o que produzimos.