Renato Aragão se redescobre
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 04 de Janeiro de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Há tempos que eu vinha sentindo um grande desconforto pela postura do humorista Renato Aragão com relação aos seus filmes dirigidos às crianças mas, não necessariamente, pensados com respeito à infância. Por reverência ao excepcional artista que, como a maioria dos brasileiros, aprendi a amar, guardei esse incômodo comigo, esperando uma resposta advinda do futuro. Felizmente ela chegou e está em cartaz nos cinemas, implícita no filme “O cavaleiro Didi e a princesa Lili”. Vou contar parte por parte as razões do que acho inadequado nas atitudes do querido Renato Aragão e os motivos que fizeram ressurgir em mim a sensação de que ele se redescobre no novo filme.

Os ídolos verdadeiros, especialmente os infantis, têm uma responsabilidade redobrada a respeito do que fazem publicamente e do endossam com a sua imagem e credibilidade. Além de toda uma história de conquistas, Renato Aragão é visivelmente uma pessoa boa, íntegra, que expressa naturalmente sólidos valores humanos e sociais. Em quatro décadas de atuação no cinema, construiu uma obra cativante, adicionada ao seu trabalho de comediante da televisão. Atuando solo, como Didi, ou integrando a trupe de “Os Trapalhões”, sempre atuou com muita simplicidade, língua corrente, humor ingênuo, circense, pastelão e chapliano, com a particular habilidade de mesclar em quantidades certas cenas romanescas, engraçadas e de ação.

Diante de todas esses atributos pessoais e artísticos, Renato Aragão vinha moldando um contra-senso em sua trajetória: ao ser amplamente cultuado pelas crianças passou a prestar um desserviço a elas quando abriu espaço à cultura do simulacro, do consumismo e da precocidade sexual, em sua vitrine do riso e da alegria. A título de ilustração, basta observar como os seus últimos filmes vinham sendo usados de maneira desaconselhável à formação infantil. Em “O caçador de tesouros”, respaldou para as crianças a noção de voyeurismo, disseminada pelo Big Brother, ao introduzir Grazielli Massafera na trama, com indiscreto erotismo. No filme “Didi quer ser criança”, havia feito incursões pelos meandros da pedofilia light, com as caras e bundas, chocas, mas insinuantes, das modelos Fernanda Lima e Daniela Cicarelli. E, para não me alongar muito, em “Didi, o cupido trapalhão”, jogou os holofotes da credulidade infantil em cima do cantor Daniel (da ex-dupla sertaneja João Paulo e Daniel), servindo de escada para os interesses meramente comerciais da indústria fonográfica.

Essas constatações me intrigavam. Por muitas vezes, me interroguei: “O que levaria alguém com tantos predicados a aparentemente ter perdido o parâmetro de si mesmo?”. E saia matutando: “Por que um artista tão importante, tão renomado, tão bem resolvido financeiramente, precisaria se subordinar às imposições mesquinhas do mercado?”. Cheguei a pensar que esse compromisso com o merchandising dos produtos da indústria cultural talvez não passasse de capricho para se manter no ranking de maiores bilheterias do cinema. Pensei muitas coisas, tentei me convencer de que é assim mesmo, mas nada me fez aceitar o fato de um artista, com a consistência do Renato Aragão, precisar se sujeitar a esse tipo de situação.

Pelo jeitão cearense amolecado de ser, pelo espírito lúdico honesto que o acompanha em suas apresentações e em nome do que representa para as crianças do Brasil, Renato Aragão precisava se libertar dessa condição de emprestar seu nome e sua imagem para “produtos” e “serviços” desaconselháveis para a infância. E eu seguia me perguntando se, no círculo das estrelas da grandeza de Renato Aragão, haveria lugar para uma postura independente, na qual fosse possível conservar a lucidez. Ou se nessa dimensão é natural que o distanciamento ofusque o que realmente importa? A realidade intramuros tem suas próprias versões. Vi que não adiantava perscrutar. Calei-me em minhas dúvidas.

Com o lançamento do filme “O cavaleiro Didi e a princesa Lili”, no qual Lívian, filha de Renato Aragão, desempenha papel central, retomei involuntariamente as minhas indagações: “Não acredito que ele vá expor a própria filha em um filme voltado para a banalização humana”. Esperei criar coragem para encarar a nova produção. Sabia que Lívian tinha estado presente em alguns dos filmes anteriores, mas quando pequenininha. Agora, não, ela já está com mais de sete anos. “Seria ela a chave desse enigma?”, pensei esperançoso. Pelo que sei de Renato Aragão, ele não teve a satisfação de aproveitar a infância dos filhos Paulo, 45; Ricardo, 43; Renato, 40 e Juliana, 28, pois precisou investir na carreira para se tornar o grande e respeitado humorista que se tornou. Mas com Lívian é diferente, as condições são outras, Aragão tem mais de setenta anos e se quiser pode se impor às regras do mercado.

Confiante no chamego que o humorista demonstra ter com a filha, tomei a decisão de ir ver o filme em que ela faz o papel da princesa Lili quando criança. Nele, Renato Aragão recorre ao conto de fantasia, de herói e princesa, no seu melhor estilo de humor ingênuo. Didi está brilhante em sua simplicidade. É um filme feito com atores que são apenas atores, que não estão ali para promover erotismo precoce ou servir ao marketing do consumismo. Até a bonita moça, Carla Rodrigues, que interpreta a princesa Lili quando adulta é uma atriz. Em “O cavaleiro Didi e a princesa Lili”, Renato Aragão chega inclusive a fazer uma sátira à escola suíça, famosa por receber filhos de personalidades para prepará-los a fim de saberem explorar seus países de origem.

Não é um filme que deva agradar à crítica acastelada, nem talvez consiga recordes de bilheteria. Todavia, noto que é um trabalho no qual Renato Aragão se redescobre em sua arte humana, genuína e imperfeita. Foram anos e anos de relacionamento com a infância telespectadora, consumidora do seu humor. Ele agora tem uma filha e pode cuidar dela, uma garotinha que trouxe o amor infantil novamente para perto do seu coração. Didi Mocó tem páginas e mais páginas garantidas na história do humor no Brasil. Não precisa mais sacrificar a boa-fé das crianças que o amam e dos adultos que, como eu, mesmo experimentando desilusões, nunca deixaram de amá-lo por conta de alguns pontos de audiência forçados pela falsificação da consciência da arte. No cinema, na sessão em que vi “O cavaleiro Didi e a princesa Lili”, vi também muitas crianças com coração de pipoca.