Ressignificação belo-horizontina
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 27 de Setembro de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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A questão das referências simbólicas vem ampliando demandas na crescente pressão da identidade do múltiplo nos centros urbanos onde o sentido de cidade caminha para se aproximar do sentido de cidadania. Essa manifestação da necessidade de preenchimento da interseção entre o imaginário e a realidade urbana aparece de maneira sugestiva nos ensaios que concorreram ao Concurso Nacional de Literatura Cidade de Belo Horizonte, realizado pela Fundação Municipal de Cultura da capital mineira, categoria da qual compus o jurado, juntamente com o jornalista e escritor Humberto Werneck e a historiadora e pesquisadora Mariza Guerra.

Os trabalhos, referentes à edição 2006, mas premiados na terça-feira passada, em reunião na capital mineira, chamam a atenção para a importância da sociedade parar, reler e projetar um novo imaginário para a cidade. O ensaio ganhador do prêmio de R$ 20 mil, intitulado “O imaginário literário de Belo Horizonte” (Liliana da Silva Alves) sintetiza um sentimento presente em boa parte dos onze concorrentes, a partir da problematização das evocações da cidade. A menção honrosa foi concedida ao autor do texto “Lembranças em trânsito” (Lucas Jório Vasconcelos), que conta bem a vida e a história da cidade, com olhar de inquieta vivência e narrativa original.

Com um olho no conteúdo dos ensaios e outro nas ruas de Belo Horizonte, observei que as praças vêm sendo recuperadas, o centro revitalizado e os prédios dos órgãos da administração pública, localizados na Praça da Liberdade, com os dias marcados para virar equipamentos culturais, sem contar com a Linha Verde, acesso da cidade ao aeroporto de Confins, que está a altura da inserção nodal de Belo Horizonte no redesenho do fluxo aéreo nacional. São novos elementos que se pronunciam para atender aos olhares e exigências de uma cidade pluralista de 2,3 milhões de habitantes, que completará 110 anos no próximo dia 12 de dezembro. A cidade ideal, criada pelo ímpeto republicano de desenvolver no alto das geraes uma capital moderna, funcional, bonita e ordeira, vai adquirindo novas feições para se ajustar ao passado e ao futuro, por angulações que emanam do presente.

Na primeira metade do século passado Belo Horizonte vivenciou sua maior ebulição criativa e política, modelando-se em face de cidade-higiênica, cidade-jardim, cidade-espetáculo, cidade-literária, cidade-crepuscular de horizonte pretensamente intocável pelo tempo e pelo jogo mutante das imagens. O peso da missão positivista virou, entretanto, um fardo para carregar e desancou a diversidade dos vários saberes que constituíram suas relações originais. Assim, o inferno da vida moderna entrou em choque com o paraíso nostálgico e a cidade idealizada desnudou-se em certas frustrações diante do cotidiano.

O ensaio de Liliana Alves mostra como os grandes escritores mineiros deram visibilidade aos marcos invisíveis, instituidores das relações na cidade. A literatura descreve, recria e autentica as obras da imaginação e da estética. Toda grande transformação tem os seus artistas, poetas, escritores, cantores e pensadores, movidos para a construção de uma imagem consistente e duradoura. Em “O imaginário literário de Belo Horizonte” a autora põe em discussão as contradições existentes entre o ideal modernizador e a utopia social republicana, no processo de evolução da capital de Minas Gerais.

Com o passar das décadas os conceitos míticos da literatura transbordante belo-horizontina entraram em dispersão com os novos modos de interpretar e atuar no espaço urbano. A relação entre a ficção e o uso funcional da cidade inclinou-se a uma situação de descompasso. O preço do crescimento a qualquer custo bateu de frente com os cuidados indispensáveis à valorização do patrimônio natural e da perpetuação dos bens culturais materiais e imateriais no ambiente social construído.

A autora premiada oferece pistas, não somente para Belo Horizonte, mas para qualquer cidade que queira encontrar o seu lugar nas suas próprias contradições e para descobrir a real localização das pessoas nos centros urbanos. Ao criar esses espaços de questionamento, a Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte revolve o rico imaginário da cidade de forma que ele possa ser pensado a partir das novas condições urbanas e suas perspectivas, em uma conjuntura mediada pela indústria do supérfluo cultural, pelo fundamentalismo tecnológico e pelo consumismo.

O que mais me tocou ao ler os ensaios sobre Belo Horizonte, não foi a organização de relatos históricos e de crônicas, mas as leituras do sentimento da cidade como sujeito e sua necessidade de reinvenção simbólica. O desconforto belo-horizontino, diante de um passado de exuberância literária e política, combina com a fase de desconstrução produzida pelo crescimento desordenado e pela dispersão do tradicional discurso urbano. Essas reflexões ajudam a reformular, a propor, a problematizar e, assim, a contribuir para dizer que no redesenho do imaginário da cidade é improdutivo deixar que os mitos do passado escondam as narrativas atuais. Os textos me agradaram, não por terem apontado saídas, mas por instigarem a produção de dúvidas, sem arroubos iconoclastas.

Ao ler os ensaios sobre Belo Horizonte fiz um paralelo de imagens entre a capital mineira e Barcelona. A famosa cidade catalã foi um centro urbano agredido pela desorganização social e estrutural que se tornou uma grande referência após ser preparada para sediar as Olimpíadas de 1992. Nessa ressignificação, novos elementos entraram na construção da imagem da cidade, com total aproveitamento dos seus referenciais arquitetônicos e artísticos. Gaudí, Dalí, Miró e Picasso estão para as artes plásticas de Barcelona como Drummond, Pedro Nava, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino estão para a literatura de Belo Horizonte.

A ressignificação não é, portanto, um abandono do passado, apenas um atalho para deixar a cidade mais próxima do que ele é e do que significa no tempo presente. O desafio de integrar as imagens do passado com as imagens dissonantes da atualidade é estimulante. As construções sociais, das quais emergem significados na literatura, na política e na arquitetura, são narrativas urbanas não racionalizadas, de percepções subjetivas, que se fixam no plano das representações.

O questionamento aos discursos autorizados e as vozes que atribuem a Belo Horizonte imagens pretendidas como definitivas, emergem pelas páginas dos ensaios como uma condição para a cidade se revelar na dimensão da sua própria realidade. Permitir-se a um imaginário mais perto do que deseja, pode levar Belo Horizonte a superar, inclusive, a dificuldade de sair do campo de força formado pelo magneto de São Paulo e do Rio de Janeiro, centros urbanos que sempre atraíram seus grandes nomes. E também por Brasília, criada por sonhos mineiros de deslocamento do eixo político do litoral.

Por ter sido uma cidade planejada, Belo Horizonte foi formada por migrantes e imigrantes e essa encantadora experiência multifacetada ainda há muitas imagens a enxergar. As metáforas são volúveis e a ressignificação belo-horizontina passa pela produção de atualizados significados étnicos e estéticos, capazes de englobar o conjunto da cidade e, ao mesmo tempo, chegar à pulsão dos microcosmos sociais e culturais da cidade.