Se essa rua fosse minha
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 4

Sábado, 10 de Abril de 1999 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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A existência de uma cidade acontece por necessidade histórica e não por exigência natural. Motivos, motivos e mais motivos levaram sociedades a construírem ambientes mais aglomeradores e de ordenamento social mais permanente. Muitas também foram as causas que deram fim a um sem-número de centros urbanos ao longo da história da humanidade. E assim, oscilando entre a pompa e o lixo, caminham as inchadas e mal resolvidas metrópoles contemporâneas.

A possibilidade de desaparecimento, esvaziamento ou de criação do pânico da cidade fantasma está ao sabor das nossas ações e atitudes enquanto cidadãos. O caso de Fortaleza é de fácil percepção, pois seu crescimento à revelia de um plano regulador está chegando ao limite do suportável. Vivemos em uma cidade cujo equilíbrio plástico é agredido pela realidade concreta, e não sabemos ao certo de onde vem o dinheiro para a aquisição dos luxuosos edifícios insistentemente erigidos por obra e graça de rompantes mágicos inexplicáveis. São os sinais evidentes de que se continuarmos assim acabaremos chegando lá. Se a nossa capacidade de produção econômica não respalda a suntuosidade de pedra e cal, granito e vidro, alumínio e cimento, edificada a toque de caixa, mantê-la ou não passa a ser uma questão dependente desse misterioso gerador de opulência, apontado por muitos como um entorno de lavagem de dinheiro. A ostentação que testemunhamos, entre lamentáveis interrogações, não passa de uma fantasia de mau gosto, que começa a mostrar sua verdadeira face na crise dos aluguéis por excesso de oferta.

O festejado arquiteto Le Corbusier (1887 – 1965) pregava que a cidade deveria ser pensada como um todo mas, dentro das suas múltiplas funções destacavam-se a de habitar, trabalhar, cultivar o corpo e o espírito e circular. Recorrendo à sabedoria desse franco-suíço, pioneiro da arquitetura moderna, podemos ver que Fortaleza não atende bem a nenhum desses requisitos. Que cidade é essa? Como separar as pessoas do ambiente construído? Não há justificativa para tamanho aumento da densidade periférica, para o abandono do centro histórico, para o soterramento do que resta de referência do patrimônio cultural material e imaterial, para o congestionamento do tráfego, para o abandono dos parques e para a desenfreada apropriação privada do território coletivo urbano.

Habitamos uma cidade-sem-lei que precisa reconquistar o controle público dos seus rumos. Não existe desenvolvimento sem que as ações promovidas no espaço urbano estejam subordinadas aos interesses da população. A valorização dos bairros, das áreas de lazer, de estacionamento e das ruas é indispensável a esse processo. Como sonhar não é proibido, dá para imaginar os muros da aldeota transformados em cercas capazes de possibilitar o desfrute dos pedestres da beleza de incontáveis jardins, muitos deles pouco apreciados por seus proprietários.

Mas isso já é devaneio. Para quem mora em uma cidade que não tem calçadas, onde ninguém aceita andar um pouquinho mais para fazer retorno e facilitar o fluxo de veículos, onde o tráfego de transportes lentos é feito pela faixa esquerda, a sinalização é precária e mini-outdoors com apoio oficial tiram a visão nos cruzamentos com suas mensagens e desenhos ridículos, qualquer desejo contrário a essa barbárie parece capricho da imaginação. É isso, ainda resta a imaginação. Quem sabe, imaginando, a gente acabe captando que é hora de tomar atitudes adequadas ao valor que temos e não nos damos conta.