Sob o luar de Maranguape
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8

Domingo, 16 de Fevereiro de 2003 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Catulo da Paixão Cearense (1866-1946) nasceu em São Luís do Maranhão, mas fez a transição da infância para a adolescência em Maranguape. Anos depois migrou para o Rio de Janeiro, onde fixou a sua morada definitiva. O ardor da puberdade vivido no interior cearense levou aquele que seria um dos mais celebres compositores brasileiros a recorrer em toda a sua vida e obra ao tema do sertão. A antológica “Luar do Sertão” é um auxílio luxuoso à beleza bucólica e romântica das noites maranguapense enluaradas. “Oh! que saudade do luar da minha terra…” Era tão apaixonado pelo Ceará que tomou para si o nome da própria paixão.

Quando adolescente fui muitas vezes a Maranguape e sou testemunha do impacto daquele clarão lunar amparado pela silhueta da serra que Catulo chamou de “verde mata”. Um bom lugar sempre é capaz de emocionar e produzir na gente alguns sentimentos estéticos vitais. Na Área de Proteção Ambiental que ainda guarda resquícios da Mata Atlântica, orquídeas, bromélias e cascatas ionizantes não me deixam mentir. Do alto da serra é possível ver o campo dunar das praias do litoral leste e os contornos altivos da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção. Nas praças sente-se a cumplicidade das pessoas com o poder público, na conservação do verde e nos cuidados com a limpeza.

Há alguns dias estive lá novamente e fiquei animado com a preparação da cidade para ser uma referência cultural e turística. Este ano o município vai comemorar os 150 anos do historiador Capistrano de Abreu e está fazendo um esforço tremendo para conseguir levar para lá a biblioteca do bibliófilo Bonifácio Câmara, que é maranguapense da gema e reuniu no Rio de Janeiro o maior acervo de livros sobre o Ceará e os cearenses. O belo Solar Bonifácio Câmara já está restaurado para receber as obras. Outros prédios que integram o patrimônio histórico e cultural da cidade também já foram preservados ou estão em fase de conclusão, como é o caso do Teatro Municipal.

A efervescência cultural é uma característica destacada em Maranguape. Da ascendência do futebol local para a primeira divisão do campeonato cearense aos animados forrós do Parque de Vaquejadas de Itapebussu, o município tem de tudo um pouco. Projetos culturais envolvem estudantes e artistas populares em bandas de música e rodas de samba. Com uma razoável ilha digital e dois Núcleos de Arte, Educação e Cultura não falta ambiente propício para a juventude fazer arte, trocar experiências, manter a liga local e a conexão com o mundo.

O município tem uma destacada presença de bordadeiras. Aliás, o bordado é tão significativo naquela região que existe uma espécie de centro de produção de bordados funcionando num casarão antigo. Os processos produtivos artesanais variam ainda de cerâmica a licores caseiros. Comprei um com bom sabor de tamarindo no apoio turístico localizado no prédio da rodoviária velha. Não vi de perto, mas tomei conhecimento do trabalho que foi feito para que as rezadeiras, sem perder a identidade cultural que as legitima junto à cultura popular, passassem a ser também agentes de saúde, numa fusão da crença popular com a medicina em benefício da saúde da população.

Tem o Museu da Cachaça, que já escrevi sobre ele neste Vida & Arte (08.01.2001); a casa onde nasceu o humorista Chico Anysio, plantação de flores e, mais recentemente, o violonista Manassés resolveu realizar um velho sonho de voltar para a terra natal e levou para Maranguape o seu estúdio Olho d´Água, onde passou a compor, fazer arranjos e a participar de gravações de discos de artistas locais, nacionais e internacionais. Tem clube de serra, uma pousadinha verde com comida caseira e o restaurante Panela de Barro. Paulatinamente a estrutura de serviço vai acompanhando os novos horizontes de desenvolvimento traçados para o município.

Maranguape impressiona bastante também pela variedade de padroeiros em um só município. Na prefeitura tem uma galeria de padroeiros que é uma verdadeira exposição de religiosidade popular. São 16 para 17 distritos. Como que para compensar o que se repete, na matriz, a padroeira é Nossa Senhora da Penha, mas as pessoas fazem também na mesma igreja a festa de São Sebastião. Por falta de santo e de proteção divina o lugar não há de perder o encanto. Maranguape está se arrumando para ser cada vez mais agradável para quem mora lá e, com isso, ocupar o posto que merece nas nossas atenções. Sob o luar que prateou o coração do poeta de saudades antevejo um efusivo festival de música em homenagem a Catulo da Paixão Cearense. Fecho os olhos e escuto pelo ouvido do desejo as pessoas cantando, como se já fosse a noite de abertura: “Não há oh! gente oh! não / luar como este do sertão”. Não há.