Théo e a luz dos girassóis
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 22 de Março de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Théo van Gogh (1857 – 1891) morreu de falência de amor fraternal, com apenas 34 anos. Ele foi um importante comerciante de artes em Paris. Mais do que isso, foi o responsável pelo apoio existencial e econômico que possibilitou a seu irmão mais velho Vincent (1853 – 1890) sobreviver até os 37 anos, tempo suficiente para se tornar um dos mais destacados gênios da história da arte. A vida desses dois irmãos holandeses foi acentuada por uma forte e mútua atração afetiva. Este ano, no dia 1º de maio, faz 150 anos do nascimento de Théo, a tradução mais intensa do que significa ser irmão.

Vincent tinha temperamento difícil e desde a infância costumava ter acessos de raiva, embora se acalmasse diante da poesia do mundo rural. Théo era gentil, condescendente e adaptado à vida urbana. Ambos tinham pele clara e cabelos avermelhados. Vincent apaixonou-se por uma mulher e depois descobriu que ela já estava noiva. Depois se viu atraído por uma prima que era viúva, mas não deu certo. Acabou se juntando com uma mulher que encontrou grávida e desamparada pelas ruas. Só para se ter uma idéia da situação, essa mulher tinha sido a modelo do seu óleo intitulado “Tristeza”. Durou pouco. Ainda teve um caso com uma aldeã, mas ela foi forçadamente afastada dele pela família, que não queria a filha envolvida com vagabundo. Por outro caminho, Théo casou-se com Johanna, autora da mais íntima biografia de Vincent van Gogh (L&PM, 2004), com quem teve um filho e colocou o nome de Vincent.

Vincent, o pintor, tinha como anseio superar a vulgaridade da existência e sofria muito por conta disso. Começou a trabalhar na adolescência. Foi balconista de galeria de arte, professor, pregador auxiliar de pastor metodista, vendedor de livros e enfermeiro, antes de abandonar tudo para ser artista plástico. Théo, que já o apoiava nas tentativas anteriores, procurou estimulá-lo na decisão, aceitando claramente que ele poderia seguir suas próprias convicções artísticas. Théo se esforçava para ver Vincent convivendo com outros artistas, mas sua personalidade difícil não permitia que isso acontecesse. Ele exigia tanto de si mesmo que tornava a sociabilidade impraticável. Era uma pessoa intensa e aborrecida, embora revelasse um estranho carisma.

O grande dilema dessa relação recaia no fato de ambos terem na arte o foco de interesse comum: um como marchand e o outro como pintor. Não era fácil para Théo ser acusado por Vincent de não se interessar em vender seus quadros. Mesmo assim, Johanna conta que Théo não deixava o seu amor pelo irmão ser abalado e jamais revidava tais acusações, por mais infundadas que fossem. Sabia da angústia de Vincent, ridicularizado por sua excentricidade, ao mesmo tempo em que não perdia tempo se questionando como se representar: vestia-se como queria e pintava como sentia. Théo trabalhava o dia inteiro e quando chegava em casa não conseguia dormir com o inquieto Vincent defendendo suas próprias teorias a respeito da arte e do comércio de arte.

Théo e Vincent tinham muitas diferenças individuais, mas nada conseguia ser superior a aceitação mútua que os movia fraternalmente. Quando Théo era aconselhado a abandonar o irmão, e isso acontecia com freqüência, ele argumentava que Vincent precisava dele para alcançar seus objetivos. Vincent sentia a confiança do irmão no seu talento e retribuía seu amor com a sinceridade de seus desabafos e dedicatórias em quadros. Théo sabia que Vincent gostava do campo, embora trabalhasse na cidade. Um dia, ao passar férias na aldeia onde moravam seus pais, preparou uma porção de capim com flores de carvalho e a enviou para o irmão de presente, para que ele tivesse em seu quarto de pensão algo que lhe lembrasse a natureza.

Vincent gostava de se embrenhar e fazer parte do ambiente que pintava. Quando morou com mineiros na Bélgica pintou-os indo para o trabalho nas primeiras horas da manhã, nos seus humildes lares e em situações desumanas no interior das minas de carvão. Nesse choque com a vida dura dos mineiros acabou perdendo a fé em Deus. Em 1880, com 27 anos, escreveu para Théo dizendo que sua única ansiedade era não saber como se tornar útil às pessoas. “Posso servir a algum propósito e fazer algum bem? (…) Através de um quadro eu quero dizer alguma coisa confortadora?”. Tudo em seu cotidiano ia virando pinturas a óleo, aquarelas e desenhos a lápis de cera.

Nem Théo nem Vincent concordavam com a sensação de que não haveria lugar para um novo conceito de arte. Ao pintar insistentemente o sol, Vincent van Gogh era acusado de transpor as fronteiras entre o que podia ou não ser pintado na concepção da época. Em 1885, Théo escreveu para uma de suas irmãs dizendo que Vincent é uma dessas pessoas que passaram por todas as provações e que, por isso, acabam se retirando do mundo, mas que é preciso ter paciência para ver se ele realmente é um gênio. E conclui: “Eu acho que é”. A crença de Théo começou a ser confirmada em 1888 quando Vincent pintou obras gloriosas, tais como O Semeador e Os Girassóis. Johanna escreve que ele afirmava ter uma extrema lucidez quando estava diante das belezas da natureza ou na convivência com as pessoas mais simples.

Nessa época, o pintor francês Paul Gauguin (1848 – 1903) estava com muita dificuldade financeira e Théo articulou para que ele passasse um tempo com Vincent, em Arles, no sul da França. A idéia que parecia boa foi um desastre. Eles tiveram literalmente uma incompatibilidade de gênios. Brigaram. Vincent teve um ataque nervoso tão extremo que cortou a própria orelha. Algumas versões contam que ele a enviou para Gauguin e outras dizem que a orelha foi parar em um bordel. Mais uma vez foi a compreensão de Théo no que diz respeito à dificuldade do irmão diante da rejeição que resolveu o problema. Eles tinham a aprovação um do outro e não ligavam para as avaliações sociais negativas que discriminavam Vincent van Gogh.

Quando Vincent quis ir para um sanatório, Théo não concordou, mas consentiu. Para ele, se a sociedade iria definitivamente chamar Vincent de louco, isso não teria a menor importância. Tratou de conseguir as melhores condições no hospício, com recomendações de que o deixassem passear a vontade. Quando Vincent teve alta, passou uns dias na casa do irmão em Paris, cujas paredes eram decoradas basicamente com seus trabalhos. Johanna conta que Théo não conseguia dormir de ansiedade, com a presença do irmão.

Vincent voltou a morar no interior, onde se sentia bem. Um dia pintou um quadro com assustadores corvos sobre o trigal, em um dia de tempestade. Pouco tempo depois, a pretexto de matar os tais corvos, atirou em si mesmo. Houve tempo para Théo chegar e Vincent morrer em seus braços, como um girassol iluminado por um claro vínculo de amor fraternal. Era o mês de julho de 1890. Seis meses depois, em janeiro de 1891, Théo também morreu. Ambos foram enterrados lado a lado no cemitério de Auvers, na França. Vincent van Gogh só conseguiu vender um único quadro dos cerca de 800 que pintou, fora desenhos e gravuras. Três décadas depois, suas emotivas pinceladas curvas e brilhantes eram festejadas como precursoras do expressionismo, o que o colocaria na galeria dos mais valiosos e reconhecidos ícones da pintura mundial.