Transparência na cultura
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 14

Domingo, 11 de Maio de 2003 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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O que há de mais grave nas ações de apoio e de patrocínio cultural no Brasil, através de renúncia fiscal, é o fato de não existirem quaisquer explicitações públicas de critérios para tomadas de decisão. Essa falta de transparência tem facilitado a má utilização de recursos, tornando-se uma maneira dos gestores estatais e privados abdicarem das suas responsabilidades sociais no nosso acelerado processo de deculturação.

Os investimentos em cultura, através das leis de inventivo, de estatais como a BR Distribuidora, Petrobrás, Eletrobrás, Furnas, Correios e Caixa Econômica Federal foram acima de R$ 200 milhões no ano passado. Dentro da nova ética governamental brasileira algumas estatais começaram a dar visibilidade aos critérios de seleção de projetos, redefinindo termos de apoio cultural e exigências de prestação de contas, tornando clara a intenção de fortalecimento da nossa cultura, chegando, inclusive, a propor contrapartidas sociais compensatórias. O que seria apenas uma atitude de cuidado com a aplicação dos recursos públicos virou uma polêmica no setor.

Para alguns fregueses de carteirinha das verbas de patrocínio definidas por força de lobby, explicitações, como a que defende a abrangência da produção nacional, são verdadeiras ameaças aos seus negócios. O meio artístico questionou alguns pontos nas normas das estatais, considerados de risco para a função da arte, e foi o suficiente para o presidente Lula determinar que o assunto saísse dos gabinetes e fosse a debate público. Os editais orientados pela Secom foram suspensos e o MinC ficou com a incumbência de debater amplamente as novas diretrizes.

Seja qual for o resultado das discussões a expectativa é de que brevemente pelo menos os princípios que fundamentam a seleção das leis de cultura possam ser conhecidos. A transparência nos critérios inibe a argumentação da orientação por falsas demandas. A oferta de conteúdo e forma qualificada, associada a uma estratégica comum, contribui decisivamente para a integração e consistência do nosso desenvolvimento. E isso não tem nada de dirigismo estatal. É estratégia de país. Diferente do dirigismo comercial do qual a cultura tem sido refém. Neste caso, a maior interferência que o Estado pode fazer na cultura é ser omisso.

A reação da classe artística, independente de razões individuais e coletivas, é um ponto importante para a mudança. Demonstra o quanto é preciso espernear para forçar discussões. Que sirva também de exemplaridade nos estados e municípios. Esse negócio de artista ficar caladinho esperando a migalha do bom moço é triste. A rotação dos órgãos de cultura sobre o seu próprio eixo tem na articulação dos artistas uma espécie de pêndulo foucaultiano. Sem ele, os artistas perdem a latitude e tendem a oscilar como presas fáceis e dóceis dos departamentos de marketing. A ameaça de orfandade apavora e desafia coragens. Os artistas têm a força da simpatia dos fãs e dos admiradores da arte e da cultura e, quando se dão ao respeito, são respeitados.

O ministro Gilberto Gil chamou para si a condução da construção da política cultural do governo. Mas a sua pasta tradicionalmente carece de dinheiro para fazer o tanto que pode ser feito nessa área em um país de tanta abundância inventiva. O jeito é apelar para competir com os produtores privados no campo da renúncia fiscal, em um procedimento lamentavelmente cheio de complicações. O ministro Luiz Gushiken, da Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica, que havia estabelecido as diretrizes preliminares para as estatais, aceitou com admirável flexibilidade o imperativo das circunstâncias e sugeriu então ao MinC que tome a iniciativa de articular um espaço democrático, aberto e transparente para definir uma política cultural resultante de consenso entre os produtores culturais, empresas privadas e estatais.

Esse debate precisa passar por uma definição da visão de destino dos agentes culturais, mas necessita principalmente estar umbilicalmente ligado ao país que queremos construir. Pouco ou muito, esses recursos são, na verdade, de toda a sociedade e o debate de correção de rumos deveria passar por essa compreensão. A discussão da ação reguladora do Estado para que a cultura incentivada seja a que realmente interessa a nação provoca a saída da circularidade das práticas de dirigismo cultural de mercado para a possibilidade de construção compartilhada de uma estratégia de país.