Um recital para o Jesus menino
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 17 de Dezembro de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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O recital que o Ad Libitum realizou na igreja do Pequeno Grande, no domingo passado, engloba, dentre outros, dois aspectos que considero de grande valor em um mundo marcado pelo fugaz, como o que vivemos na atualidade: um, por ter sido uma celebração natalina voltada para homenagear o nascimento de Jesus, o Jesus criança, em sua simplicidade esplendorosa; e o outro, por não tocar as deprimentes músicas natalinas que viraram hits de fim de ano em shopping center. O grupo camerístico dirigido pela professora Angelita Ribeiro interpretou obras medievais, renascentistas e barrocas, que atravessam o tempo aos sons de flauta doce, percussão, violões e coloridos sininhos.

De portas abertas, o templo neogótico, da segunda metade do século XIX, com seu rebuscado altar de madeira, vitrais multicores e pontiaguda estrutura metálica, contou com um público atento e emocionado. As mais de quinze canções apresentadas, incluindo um pot pourri, ora festivas, ora graciosas, ora alegres e ora contemplativas, não se enquadravam em música ambiente, nem música funcional, nem musicoterapia, nem música ritualística; eram apenas música, na dimensão sonora da narrativa do amor em Jesus, no seu aniversário de mais de dois mil anos, e nada mais.

O que me chama a atenção na emoção musical desses momentos é o poder de sintonia existencial que toma conta das pessoas. O ambiente fica permeado da paz que flui do equilíbrio, do ressoar do viver pleno que inspira a transcendência e, especificamente no caso de um recital-celebração natalino, da autoconsciência do significado de sermos a imagem e semelhança do Menino Deus.

Fui à igreja do Pequeno Grande com a minha família. O nosso filho Lucas tocou com os estudantes que acompanharam o Ad Libitum. Das músicas que Bach (1685 – 1750) escreveu para o céu, foram escolhidas duas para este recital: uma, “O Jesulein sub, o Jesulein mild”, para a entrada do segundo cortejo das crianças com velas e flores e outra, “Ermuntre dich, mein schwacher geist”, para a leitura dos versos que escrevi por solicitação da Angelita especialmente para este momento. Coloquei o título “Noite de Ninar Jesus” no poema que teve a leitura caprichosa e envolvente da estudante Bia Farias:

Caminho para Te encontrar / nessa casa onde mora a luz / É noite de boas festas / A estrela maga me avisou / que os sonhos são tão bonitos / como o Teu brilho no céu / Oh! Jesus que noite linda / Esta noite de Te ninar

Meus olhos clareiam mais quando Te vejo / O sol clareia / A lua clareia / As estrelas clareiam / A vela clareia / As flores clareiam / Clareiam, clareiam, clareiam

Meus olhos ficam mais vivos quando Te vejo / O sol é vivo / A lua é viva / As estrelas são vivas / A vela é viva / As flores são vivas / Vivas, vivas, vivas

Meu olhar encontra o Teu na luz / Da noite santa / Da noite sagrada / Da noite em que Maria / Cheia de graça / Iluminou de Ti o meu coração

Tudo é luz / Na noite do Teu nascimento / Feliz aniversário, Jesus!

Depois da leitura do poema, o sentimento reflexivo seguiu em acolhimento ao sentido do Natal. O Ad Libitum, formado por Angelita Ribeiro, Cristiane Cerqueira, Luciana Gifoni, Maria Helena Lage e Lia Villar, prosseguiu o recital, contando com a participação especial do grupo de violões do professor Davi Calandrine (Gilberto Brito, John Nascimento, Jefrey Cardonha e Vera Barros), com a flauta de Veridiana Maria Silva e com os alunos da Escola de Música Angelita Ribeiro, Gabriel Lage, Beatriz Farias, Beatriz Mota, Letícia Marinho, Levi Barros, Caroline Brandão, Lucas Paiva, Celso Santos, Camila e Artur Albuquerque, Julia Marinho, Paula Meneses, Luisa Vasconcelos e Larissa Brandão.

Tudo concatenado no tempo, nas mensagens, na atitude das crianças e no diálogo dos instrumentos. Com o que a música tem de mais divino, que é a capacidade de elevar a alma, o sentido do Natal se encorpa como festa de alegria pelo nascimento de Jesus. Na noite natalina da igreja do Pequeno Grande, fluímos nos valores plenos da vida, na audiência cosmogônica que a cultura nos dá a todos em nossas individualidades e buscas coletivas.

Essa situação de deleite me fez ausente por alguns instantes em que sai em pensamentos para refletir no quão é lamentável que a competição por fiéis tenha feito muitos religiosos partirem para o uso de músicas ao “gosto” do mercado e a religião ficou refém de uma concepção empobrecida de arte, que confunde o popular e o acessível com o massificado muitas vezes de qualidade estética precária. Muitos lugares de comunhão confiscaram o tempo da contemplação, colocando em xeque a própria espiritualidade.

O recital-celebração do Ad Libitum e convidados na casa do Jesus criança foi uma dessas aproximações da arte e da religião que quem participa não consegue ficar indiferente. A alma cultivada assume desígnios do eco, da reverberação do belo, na sua extensão divina. Quem se abre à luz, se ilumina no maravilhamento. Pelos caminhos sonoros da música não precisamos nos unir pelos pecados, mas pelo que temos de vibração comum na beleza e na grandeza.

Na sociedade do narcisismo e da dispersão do amor, muitos templos se transformaram em clubes de catarse, onde toca a música compensatória, mais distante das pegadas de Jesus e mais próxima dos rastros dos trenós do Papai Noel. Não sou contra o “Bom Velhinho” em si, mas a muito do que ele passou a representar. Meus filhos, o Lucas com 10 anos e o Artur com 8 anos, já compreenderam que Papai Noel foi uma divertida fantasia. Passou e o Natal não acabou para eles porque tivemos sempre o cuidado de dizer que a festa é de Jesus. Noel é um animador da festa e foi bom enquanto esteve na nossa imaginação. E vai ser bom enquanto for lembrança. Por que não?

O Natal entregue somente ao Papai Noel fica tão lamentável quanto às melosas, nostálgicas e comoventes músicas classificadas como natalinas. As árvores de natal iluminadas nas cidades, acendem o quê? Talvez pisquem apenas para a compulsão previsível e arbitrária da tradicional compra de presentes. Dar presente, trocar presente, apenas assim, é uma forma egoísta de pedir ou de ostentar. E para completar, nos últimos anos tenho visto muita gente imitando os países centrais do consumismo, onde se dá dinheiro de presente, um vale-presente natalino, de presentes que se vão, que são vaidades. É bom dar e receber presente de Natal, mas quando vemos no outro um Jesus menino, na renovação de fé.

Mais do que amaldiçoar a violência, a corrupção, as desigualdades e as injustiças resultantes do egoísmo social, precisamos de música para espantar os males. Música mesmo, que tenha honestidade autoral e emocione quem a interprete. Música como sublimação. Tomando o referencial bíblico, já que se trata de uma reflexão natalina, em várias passagens do primeiro livro de Samuel (16:16, 16:23, 18:10, 19:9), Saul só consegue se livrar do espírito maligno que dele se apodera quando Davi toca harpa.

A tranquilidade precisa de música porque a música é liga de espiritualidade. Um recital é um jeito poético e amável de brindar Jesus. A atenção quieta e as palmas calorosas das pessoas abrem passagem na superfície do cotidiano para o recôndito do nossa ânima, sem esforço para sentir, porque a arte que nina Jesus é aquela que deixa para lá o natal do desejo – aquele que quer algo em troca, que quer retribuição – para dizer do natal do afeto, que se dá em vibração, que se coloca como parte de todas as partes, em uma mesma frequência de sentimentos sublimes.