Uma cidade de leitores
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 29 de Outubro de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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A função social do livro e da leitura na sociedade da conectividade está longe de ser esgotada. Reforcei essa convicção em mim nesses primeiros dias de participação, por conta dos meus livros editados pela Cortez, na 13ª Jornada Nacional de Literatura e na 5ª Jornadinha Literária de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, cujo tema é “Arte e Tecnologia: Novas Interfaces”. O evento começou na segunda-feira passada, dia 26 e termina amanhã, dia 30, com a participação de leitores de dezenas de municípios da região Sul e de autores nacionais e estrangeiros.

Em um cenário mundial permeado por novos parâmetros técnicos, tecnológicos e por novas configurações de signos de comunicação, a inclusão da tecnologia como a terceira perna de um conceito antes equilibrado em cultura e educação me parece um grande salto dado pela Jornada, iniciada em 1981, por idealização da professora e doutora Tânia Rösing, que em três décadas tem representado os raros intelectuais que ainda pensam, articulam, fazem, e que interferem com teoria e prática na nossa vida social, cultural e educacional.

A atenção especial à tecnologia traz uma nova inflexão ao evento, algo com a mesma apurada percepção que passou a dar importância à infância quando da criação da Jornadinha em 2001. Com isso, a geometria das narrativas ganha infinitas combinações e inumeráveis veios, em um momento que a urgência por buscas do essencial torna-se um dilema característico do cotidiano das aparências. Nessa tarefa de inverter o tempo para colocá-lo à serviço da vida, a palavra de Passo Fundo é aquela que redesenha e dá sentido à relação entre as pessoas e das pessoas com às dimensões do viver com dignidade.

Em Passo Fundo o autor vale mais pela obra do que pelo poder de interferência da editora que comercializa o seu trabalho. Esse é um grande diferencial da Jornada Literária de Passo Fundo, embora, paradoxalmente, seja por isso, e por sua localização fora do eixo sudestino, que seu grande sucesso ainda não repercuta tanto no País. Tomando como referência a realidade concreta e não apenas a realidade da mídia comercial, a Jornada é a maior e a mais importante festa da leitura e do livro no Brasil. Por ser um encontro do que somos com as formas com as quais nos exprimimos, as pessoas vivenciam a literatura e não apenas discutem sobre literatura em Passo Fundo.

Tomando a leitura em sua dimensão mais plena, a Jornada, promovida pela Universidade de Passo Fundo e pela Prefeitura Municipal, com o apoio de toda uma rede de instituições públicas e privadas, locais e nacionais, coloca autores, leitores e espectadores diretamente no processo de renovação do repertório de possibilidades para a construção de um futuro preferível. E pode ampliar substancialmente sua aplicação com propriedade porque durante anos trabalhou no amadurecimento dos conteúdos culturais e educacionais, imprescindíveis ao uso adequado das tecnologias.

Enquanto muitos insistem no debate amorfo sobre o fim do livro e da leitura, a Jornada de Passo Fundo reage afirmativamente à questão com o acolhimento da tecnologia como aliada na expansão de entendedores, reelaboradores, inventores e propagadores da auto-estima, do auto-respeito e da auto-confiança no sentido social e emancipatório. A literatura e suas linguagens de relacionamento permite que se entrelacem jeitos de ver e interpretar o mundo, em uma fantástica abertura de janelas ao sublime, à experiência estética, ao preenchimento da incontornável necessidade humana de ler, ser e contar histórias.

Com o tripé, cultura, educação e tecnologia, Passo Fundo dá um passo largo no sentido de assegurar o futuro do livro. A capacidade de produção de novidades digitais terá seu lugar de venda de “e-books”, “e-readers” e “e-visions” e essas publicações eletrônicas, suportes para leitura e para visualização de ilustrações servirão para dar impulsos extraordinários à circulação de obras impressas, táteis e companheiras. Digital ou impresso, o que importa neste caso é que um livro tem como finalidade a leitura. As novas interfaces serão modeladas na complementaridade: um pode ser mais eficaz no papel novidadeiro, de pesquisa fácil e de leitura instrumental, enquanto o outro, tende a cuidar do permanente, da leitura prazerosa e do uso mais humanizado das palavras.

Na perspectiva do desenvolvimento de práticas leitoras para a cibercivilização, assumida pela Jornada de Passo Fundo, a única manifestação fora de sintonia que percebo é a música tema do evento. Ela nega o sentido transgressor da Jornada ao incorrer no discurso reducionista de que a vida perdeu a sua concretude, resumindo-se à virtualidade. E para completar, vale-se da composição “SOS” de Raul Seixas, sem qualquer preocupação com crédito. A criação do Maluco Beleza diz assim: “Oh! Oh! Seu moço / do disco voador / me leve com você pra onde você for / Oh! Oh! Seu moço / mas não me deixe aqui / enquanto eu sei que tem / tanta estrela por aí”. No jingle canção da Jornada encontramos: “Ô linda moça / do disco voador / me leve pra Jornada / Sempre que você for / Ô linda moça / Só não me deixe aqui / enquanto eu sei que tem tanta estrela por aí”.

Lapso insignificante à parte, registrado apenas pela armadilha conservadora que representa, o certo é que a Jornada é uma festa coletiva que congrega dois atos essencialmente pessoais, o de escrever e o de ler, na linguagem que for. Mesmo que uma história seja produzida colaborativamente e mesmo que ela seja contada em grupo, ela parte e chega ao indivíduo que age e interage na coletividade. Assim, faz-se a formação de pessoas capazes de valorizar o texto literário, mas que sejam intérpretes das diversas linguagens e usuárias dos diversos suportes das mais variadas manifestações culturais, por meios impressos ou digitais, físicos ou eletrônicos.

Em seu discurso de abertura da Jornada e da Jornadinha, a professora Tânia disse que os estudantes já estão prontos para o uso das novas tecnologias; disse que cabe aos educadores, animadores de acervos e demais responsáveis pela formação de crianças e adolescentes cumprir o desafio de ofertar vivências leitoras que sintonizem cultura, educação e tecnologia, de modo a preparar leitores entusiasmados, críticos e emancipados.

A Jornada e a Jornadinha catalisam uma série de eventos que convergem para a mesma data de suas realizações, agitando Passo Fundo: 8º Seminário Internacional de Pesquisa em Leitura e Patrimônio Cultural, o 3º Encontro Nacional da Academia Brasileira de Letras, o Seminário Internacional de Contadores de Histórias, o 2º Encontro Estadual de Escritores Gaúchos, o Encontro Internacional da Red de Universidades Lectoras e mais uma expressiva quantidade de cursos, conferências, espetáculos, exposições, mostras de cinema e fotografia e feira de livro.

A cidade gaúcha, situada a 280 km de Porto Alegre, assume seu lugar no pódio de Capital Nacional da Leitura, por ser a primeira do País no “ranking” das cidades brasileiras em que mais se lê. Passo Fundo tem pouco mais de 150 anos e uma população de cerca de 200 mil habitantes. É um entroncamento de relações sociais, econômicas e culturais, que atrai dezenas de outras cidades, apresentando um visível compromisso regional. Por isso, mais de uma centena de municípios são envolvidos desde a pré-Jornada e pré-Jornadinha, quando são anunciados os autores e os livros selecionados, em encontros, cursos e seminários, que visam estimular a leitura e a discussão das obras dos autores, pesquisadores e artistas convidados.