A conversa é de igual para igual. Ele sabendo que ela tem 12 anos e ela ciente dos 77 anos dele. Nessa relação, um não vai para o futuro enquanto o outro fica no passado. Ambos vivem em um tempo e um lugar onde relacionamentos intergeracionais se desenvolvem por vínculos comunitários, compartilhamento de valores e sentido comum de destino.
Terem nascido em décadas distantes não interfere no quanto um surpreende o outro com suas personalidades inspiradoras e generosidade prática. A realização de um está dentro da perspectiva do outro pelo sentimento coexistente nas ocupações criativas de convivência multieducacional.
O nome dela é Yasmin Pereira, e o dele Espedito Seleiro. Ela é diretora do Memorial do Homem Kariri, e ele um mestre dos ornamentos da cultura contemporânea nascida no ciclo do couro. Por muitas vezes viajaram juntos. Ele expondo sua obra e ela como integrante da banda de lata Os Cabinha.
Essa história de amizade que movimenta trocas afetivas e efetivas em ciclos etários da vida comunitária na cidade de Nova Olinda, no interior cearense, é um dos tantos frutos da integração e socialização promovida há 25 anos pela ação acolhedora, afetuosa, relacional, estética, técnica, emocional e intelectual da Fundação Casa Grande.
No documentário produzido pelo Sistema Jangadeiro para homenagear Espedito Seleiro, lançado na última sexta-feira (25) no cine UCI-Iguatemi, e que terá sessão especial amanhã (31) em Nova Olinda, é evidente a predisposição dos dois de estarem juntos num ideal de respeito e responsabilidade pela dinâmica transformadora da coletividade.
Espedito Seleiro conta que por muitas vezes foi convidado para ir morar nos grandes centros urbanos onde o seu trabalho tem aceitação, sendo, inclusive, destaque nas grifes Cavalera, Cantão, Ronaldo Fraga e irmãos Campana. A resposta dele é: “pegue tudo o que você está me oferecendo e entregue para a cidade pequenininha para ela crescer”.
Atrair pessoas interessadas em suas sandálias, bolsas e móveis para fazer compras em Nova Olinda é uma filosofia de “sobreviver todo mundo junto”, presente também na percepção de Yasmin, que desde os seis anos de idade tem a satisfação de guiar visitantes da Casa Grande para conhecer o trabalho de Espedito Seleiro.
O mestre da arte em couro relata com a simplicidade dos grandes artistas o quanto a sua fama resulta do fato de existir em Nova Olinda a Fundação Casa Grande e seu fundador, o educador social Alemberg Quindins. Antes, a cidade “vivia que nem um peba, dentro do buraco”. Com o declínio do mercado de indumentária para vaqueiro, foi Alemberg quem o estimulou a inovar e a passar de seleiro a designer.
Em sua sabedoria de figura aglutinadora, fazedora e impulsionadora de realizadores e realizações, Alemberg realça o valor de Espedito Seleiro como um marco do Cariri, alguém que desenvolveu “todas as possibilidades em que o couro poderia se colocar para habitar a arte”. Não é à toa que ao longo dos anos ele divulga o artista usando pessoalmente suas peças.
Essa cultura de convivência multieducacional, que passa pela força catalisadora da Fundação Casa Grande, tem seu êxito na potência dos laços afetivos comunitários e no que produz de cumplicidade existencial. Tudo ao sabor do aprendizado coletivo.