Em quíchua, a mais importante família de línguas dos povos originários da América do Sul, a palavra “yapa” refere-se à retribuição de alguém por ter participado da colheita. É desse substantivo ancestral que o grupo equatoriano “Taller La Bola” se vale para oferecer seu som mesclado por peças de sonoridades pré-colombianas e instrumentos urbanos. Tudo com teoria, prática e animação.

Depois de alguns dias participando de uma integração com estudantes e professores do Escola de Música de Guaramiranga, tempo em que se aproximaram da arte das bandas cabaçais, bois, maracatus, chorinhos e outros ritmos brasileiros, e construíram instrumentos juntos, eles se apresentaram na noite do sábado passado (9) no Largo da Água, envolvendo a plateia no refrão da música “Qué energía”, do álbum “Champús Sonoros con Yapa”, e em coros de palmas e coreografias.

Ada (aerófonos), Miguel (tambor de crioula dominicano) e Nicolás (flauta transversal e clarinete) são irmãos e se revezam em vozes, charango, quatro venezuelano e outros apitos, cordas e percussão. O grupo conta ainda com o baixista Germán Mora. Esta é a segunda formação do “Taller La Bola”, fundado em 1991 pelo músico e restaurador de arte Luis Oquendo (1960 – 2014), o pai, que tinha Ximena Pozo, a mãe, em sua constituição original.

A ideia inicial era algo como uma oficina de grupo multidisciplinar, daí o nome do projeto, mas tudo mudou quando Oquendo ganhou de presente uma ocarina da cultura Jama Coaque (atual Manabí, zona costeira equatoriana) e passou a colecionar instrumentos pré-colombianos equatorianos e a desenvolver uma metodologia de uso desses instrumentos da música ancestral, alguns deles com datação de 500 e 2.500 anos.

 

O grupo “Tailler La Bola” com a plateia, após espetáculo realizado no Largo da Água, em Guaramiranga. Foto: Eunilo Rocha

Com cinco álbuns distribuídos nas plataformas digitais, o “Taller La Bola” participa da renovação do bonito cancioneiro equatoriano, conhecido por seus sanjuanitos, danzas, contrapuntos, carnavalitos e conjuntos de raízes tradicionais andinas, recorrendo a sons da religiosidade, da lida agrária, dos feitos de caça e da guerra na antiguidade e sendo, ao mesmo tempo, um grupo de música urbana.

O grupo realça testemunhos mudos de antepassados que se sentiam integrados aos elementos do universo e construíram instrumentos com decorações antropomorfas próprias de culturas que sentiam o som como uma força divina; povos que tinham a natureza e os seres vivos como dádiva, que veneravam o sol, os vulcões, as montanhas, os rios e o mar. A tradição oleira comunitária da civilização Valdívia (3000 a 1500 a.C.) tem destaque especial no espetáculo do “Taller La Bola”.

Ao trazerem a musicalidade dessas razões cosmológicas da antiguidade para o presente hipermoderno, em uma proposta de gênero musical que eles chamam de “Audaz Urbano”, esses artistas realmente parecem dispostos a cumprir a difícil tarefa de valorizar e expandir a cultura latino-americana, a partir de uma ancestralidade equatoriana, cujas funções da iconografia ceramista apresenta matizes e particularidades da costa do Pacífico, entre a cultura carchi colombiana e a mochica peruana.

O intercâmbio musical e cultural desse grupo do Equador com gente de música e de outras artes do Maciço do Baturité, construindo instrumentos e compondo coletivamente, reforça a importância de instituições como a Água (Associação dos Amigos da Arte de Guaramiranga), que há mais de 30 anos promove a integração do município com outras culturas, e do Pacra (Projeto de Arte e Cultura na Reforma Agrária), com seus 20 anos valorizando a memória, os saberes e os fazeres das culturas enraizadas nos assentamentos do Ceará. Yapa!!!

Fonte
https://mais.opovo.com.br/colunistas/flavio-paiva/2023/09/11/yapa-que-energia.html