Depois que li Flicts, de Ziraldo (1932 – 2024), nunca mais fui o mesmo; ou melhor, nunca mais tive dúvidas de que me esforçar para ser quem sou fora uma decisão muito acertada na minha vida. Esse personagem, que é uma cor, tinha aflição por não encontrar o seu lugar nas convenções sociais, simbolizadas genialmente pelo autor na paleta do arco-íris.

Senti-me encorajado e legitimado a seguir com o pensamento livre e o espírito multiturma, a despeito de eventuais pressões e ameaças de isolamento por parte de grupos sociais constituídos por afinidades de interesses e afinidades eletivas. Esse livro aliviou-me da sensação de inconveniência que eu tinha ao me sentir diferente ou quando divergia das opiniões mais influentes.

O percurso de Flicts em busca de si, passando de cor em cor e sendo rejeitado pelos significados estabelecidos em diversos agrupamentos de cores, o fez sentir-se frágil diante da força do vermelho, tímido na frente da imensidão do amarelo e sem representação no verde da bandeira. Contudo, percebeu que, vista bem de pertinho, cada cor pode ser mais do que a convenção dada a ela.

Flicts é um livro que une poesia textual e visual para tratar da integração do que não se encontra nos padrões definidos na sociedade. Combinando os encantos da arte e da literatura, Ziraldo revela nessa obra a dificuldade de ser diferente e de ter preferências próprias no enfrentamento do preconceito, do racismo, do bullying e de qualquer tipo de discriminação.

Foi a leitura de Flicts que me fez descobrir que além do indivíduo existe o ser pessoa, uma instância evolutiva que inclui o indivíduo, indo além de ser apenas uma diferença. Ao enxergar-se como a cor da lua onde a lua está, o personagem transcende o estado de ser apenas indivíduo para o de ser pessoa, condição humanizadora da sociedade.

Detalhe de página do livro Flicts, de Ziraldo.

Obras como Flicts têm o gérmen da cidadania; e a cidadania passa pela migração de indivíduo para pessoa, pelo autorreconhecimento e pelo entendimento desse deslocamento na condição de ser humano. O indivíduo, como dizia a pensadora andaluz María Zambrano (1904 – 1991), é sempre uma oposição à sociedade. No livro “Persona y Democracia” (Alianza, 2019, Madri), ela afirma que “A palavra indivíduo sugere o que há de irredutível no ser humano concreto individual” (p.183).

A história de Flicts traz essa libertação do isolamento na comunidade, com a sutileza do criador mineiro, que, com delicadeza e aragem originais, oferece à atenção de leitoras e leitores a experiência de uma cor em seu jeito particular de observação e apropriação da realidade; uma recriação da subjetividade propícia à vida democrática, como afirma Zambrano. “Se quiséssemos definir democracia, poderíamos dizer que é a sociedade na qual não apenas é permitido, mas exigido, ser uma pessoa” (idem).

A infância no jogo das diferenças e do diferente, abordada em Flicts, é um tema mais e mais urgente no mundo de intolerância de todas as cores e anticores da atualidade. Obras com esse poder da simplicidade só podem ser frutos de autores comprometidos com uma existência transformadora, como teve Ziraldo, o cartunista, o cartazista, o caricaturista, o editor do Pasquim e tantas outras atividades que assumiu sempre destituído de qualquer medo por sua autenticidade.

No pluriverso da literatura infantil, Ziraldo também foi um anti-herói como o seu alter ego Flicts. Foi assim com a Turma do Pererê, a mais fabulosa das histórias em quadrinhos infantis brasileiras, publicada inicialmente em 1959 na revista O Cruzeiro, e depois, a partir de 1975, transformada em revista própria, publicada pela Editora Abril. E foi assim também com o Menino Maluquinho, que desde 1980 não para de ser o melhor amigo da criança leitora do Brasil.

Obrigado por tudo. Siga em paz!

Fonte
Jornal O POVO