As crianças têm cada vez mais sede de infância e fome de brincadeira. Na pressão do consumismo, meninas e meninos vivem tempos de dificuldade de acesso a momentos de diversão, integração, sociabilidade, compartilhamentos intuitivos, descobertas e oportunidades imaginativas, onde predomine o idioma do brincar e não haja cobrança de desempenho.

Muitas famílias brasileiras estão buscando na Festa do Saci alternativas à lógica dos eventos massificados. Desejam para filhas e filhos, netas e netos, sobrinhas e sobrinhos algo mais acolhedor e descomprimido, que possibilite vivências de singularidades estéticas e narrativas culturais orgânicas. Sacizar é um verbo levemente conjugado pela meninada em situação de agitação do corpo e da mente.

A potência do Saci vem da sua origem como ato imaginativo, do seu espírito travesso e do espanto como experiência lúdica e mítica. Ele é filho da mata, um fauno concebido na fantasia nativa, que ganhou significativas contribuições afro e europeias. Em tupi-guarani Çaa Cy significa “olho que assusta” e Pérérég quer dizer “saltitante”. Era assim que o povo indígena fazia referência ao canto agourento que ouvia das aves noturnas.

O Saci saltita pelas relações de coexistência entre o real e o imaginário. Foi assim que índios, emboabas, tropeiros, boiadeiros, escravos transferidos e fugidos, e tantos outros tipos andantes espalharam em redemoinhos migratórios a sua figura por todo o território brasileiro, tornando-o um mito integrador e de abrangência nacional. Dotado da identidade do múltiplo, o Saci Pererê carrega em sua essência variantes sedimentadas conforme o devaneio dos seus narradores.

A essência ecológica e multiétnica do Saci Pererê foi pesquisada e ressignificada, em 1917, pela inquietação de Monteiro Lobato (1882 – 1948), quando o criador do Sítio do Picapau Amarelo delineou os traços essenciais desse personagem que se tornou o mais importante do seres fantásticos da cultura brasileira.

Assim, quando pais, mães, educadoras, educadores, cuidadoras e cuidadores percebem os redemoinhos se formando e levam as crianças que amam para brincar em ambientes sacizísticos, estão dando a estas a possibilidade de uma incrível vivência antropológica, onde fluir e interagir com o mito se dá em ritual de inversão.

As crianças, como os seres imaginantes que são, amam a Festa do Saci porque sentem que nela estão protegidas na liberdade do brincar e da brincadeira. Ao serem estimuladas a participar da festa com personagens que elas mesmas podem criar, meninas e meninos brincam com os humores desses personagens e suas missões.

A figura do saci é tão impressionante que nem precisa estar materializada na festa para afirmar sua sustentação social e cultural. Basta um vento que passa, um vulto que se mexe, um som esquisito que ecoa para o saci anunciar sua presença, transitando pelo fluxo interior dos participantes e provocando o maior alvoroço imaginativo.

Uma sacizada permite a participação das crianças como elas são em seus sonhos, seus encantamentos e formas de apropriação do mundo, em um alegre reatar de laços de amizade entre si e com a natureza, uma situação de vivência na qual os elementos significantes interagem e o conceito de verdade é embaralhado no redemoinho simbólico que o giroscópio do mito possibilita.

As diversões sacizísticas sempre estiveram associadas ao folclore. Em 2003, estimulada por uma danação do jornalista Mouzar Benedito, a Sosaci (Sociedade de Observadores de Saci) propôs aos interessados no fortalecimento da cultura brasileira que se passasse a comemorar o dia 31 de outubro como o Dia do Saci, em contraponto ao avanço por todo o Brasil das festas de Halloweencom seus personagens-produto e fantasias padronizadas.

Em 2007, motivado por essa provocação da Sosaci e pelo trabalho do projeto Criança e Consumo, do Instituto Alana, escrevi e compus o livro-cd A Festa do Saci (Cortez Editora), no qual crianças livres do consumismo se unem a seres fantásticos de todo o planeta para libertar o Saci das amarras conceituais do folclore, e com ele vivenciar o tempo presente.

As experienciações de sacizadas das quais participei a partir da publicação desse livro-cd, muitas delas como realizador ou curador, me mostraram que a Festa do Saci é quintal, pátio, praça e parque, enquanto o Halloween é shopping center, salão de festas e buffet. Saci é coisa de brincante e Halloween é entretenimento. Um tem cheiro, forma e movimentação diferente em cada lugar, enquanto o outro é tudo igual. Isso me animou a escrever e compor em 2012 o livro-cd Se Você Fosse um Saci (Armazém da Cultura), em cujas páginas a figura do saci não precisa aparecer para que ele possa ser o protagonista.

A manifestação mais autêntica da infância na Festa do Saci acontece quando as crianças aceitam naturalmente a companhia de um amigo que não existe, que para estar presente não precisa necessariamente ser um boneco. A aparição do Saci pode se dar com uma chuva de gorros – e, aí, cada criança se assume Pererê –, ou simplesmente nas palavras das histórias, nos cheiros e nos ventos. A imaginação é a energia essencial na construção de sentido de uma sacizada.

O Saci é um anti-herói dos tempos atuais, uma figura que aproxima pessoas de todas as faixas etárias pela essencialidade da natureza lúdica mais profunda. A Festa do Saci é uma festa de criação e de fortalecimento de vínculos significativos, no sentido pleno da espontaneidade, da alegria e da liberdade que se constrói na concertação das diferenças.

A Festa do Saci pode integrar vários momentos da vida social e cultural brasileira. No Carnaval, pode ser bloco de Saci; na Semana do Meio Ambiente, festança dos defensores das matas; na Semana do Folclore, festival de mitos populares; no mês das Crianças, sacizadas e feiras de trocas de brinquedos; na Semana da Consciência Negra, patuscada de Ossaín; e no Ano Novo, celebração da paz.

O Saci Pererê é, por natureza, um ente coletivo e, como tal, instiga o simbólico em diversos domínios. Ele encanta não só por ter como mecanismo propulsor o invisível que se torna visível no imaginário e o irreal que se torna concreto na crença, mas por representar com autenticidade a sociedade que o criou. E isso torna o fenômeno da SACIabilidade indispensável à necessária aragem do imaginário brasileiro e à fartura de inventividade das crianças.

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(*) Flávio Paiva é jornalista, colunista semanal do caderno Vida & Arte do jornal O Povo, ativista de sacizada e membro do conselho do Projeto Criança e Consumo do Instituto Alana.