Misturo literatura e música como quem junta argila e água para fazer peças artesanais de cerâmica. Faço tudo com a agradável sensação de me sentir artesão das palavras e das melodias em uma grande comunidade de mestras e mestres, atuantes no mundo da produção independente. A complementaridade substancial e técnica está na essência desse pluriverso de criadores autônomos e criações livres.

Nessa caminhada, fazendo o caminho ao andar, como dizem os versos do poeta espanhol Antônio Machado (1875 – 1939), cheguei ao albergue onde nasceu meu mais novo livro infantil, “Que noite, Torito!”. Observando o lugar em trânsito de atemporalidade, desenvolvi uma narrativa pontuada de canções, na qual o protagonista Torito dorme sozinho pela primeira vez, entre jogos de pensamentos e imaginação.

Torito é uma obra artesanal, produzida do modo que mais me anima a fazer literatura com música para crianças. O curioso é que o enredo surgiu primeiro com estrutura mental inspirada no espanhol. É que às vezes eu ficava a imaginar o que sentiriam as crianças dos países hispânicos ao terem contato com a minha produção infantil.

Embora tenha preservado a referência nominal ao touro, lancei mão da presença festiva do boi nos territórios de idioma hispano-descendente por ser este um elo simbólico mais próprio a ser desenvolvido no âmbito da cultura da infância. Então escrevi esse livro para meninas e meninos pensando no que observei em viagens com a minha família pela América Latina e Espanha.

Dentro da analogia artesanal da proximidade, procurei a mestra Nathália Cardoso para fazer a tradução, por ser ela uma caminhante das veredas latino-americanas e uma estudiosa da cultura hispânica, além de professora de espanhol e, sobretudo, por conhecer como ninguém as entranhas do meu trabalho autoral.

Ela fez uma tradução primorosa, com a minha cara, o que é o sonho de qualquer autor. Vale dizer que não é nada fácil traduzir uma obra que tem músicas como parte de sua narrativa, porque, ao integrarem o enredo, as letras não permitem a liberdade normalmente presente nas versões. E a Nathália foi precisa nas soluções criativas que utilizou para assegurar a integridade das cantigas.

Quando estava tudo pronto, submeti os originais em espanhol ao mestre Erivan Gomes, da Telos Editora, que é um editor com larga experiência internacional, e ele, de pronto, se dispôs a editar o livro em espanhol. Entretanto, revelou que queria fazer também uma edição em português, o que requeria nova modelagem.

Como a imagem significativa do boi está presente também na cultura popular dos países lusófonos, achei uma boa ideia, mas, como eu não tinha um texto pensado para publicação em português, passei a fazer uma espécie de transposição reversa, com as adaptações necessárias a esse propósito. Foi divertido tudo isso.

Comentei com ele que considerava importante que as ilustrações fossem feitas por alguém que tivesse nascido ou passado a infância em algum país latino-americano. Vi que a Telos havia publicado livros com trabalhos do Canizales, que é colombiano e mora nas Ilhas Baleares, e sugeri que fosse ele o mestre a ilustrar o Torito. O Erivan concordou, submeteu o texto ao Canizales, e ele fez uns enfeites luminosos, como se tivesse acendido uma lanterna dentro da cabeça do protagonista, projetando seus pensamentos nas páginas do livro.

Encaminhada a edição em espanhol, com revisão dos mestres escritores mexicanos Pablo de la Vega e Santiago Ochoa, precisávamos definir quem interpretaria as dez cantigas. No primeiro momento, enquanto a ideia era fazer o livro apenas em espanhol, fiz uma sondagem para descobrir uma cantora ou um cantor que também tivesse nascido ou passado a infância em algum país latino-americano.

Até que, em conversa com o mestre André Magalhães, músico e produtor com quem tenho trabalhado há mais de duas décadas, ele lembrou do nome da cantora uruguaia Luana Baptista. Incrível é que eu tinha pensado nela também. Havia conhecido a mestra Luana em 2018 no Bona, em São Paulo, quando ela integrava o grupo do espetáculo “Nômade”, da cantora moçambicana Lenna Bahule.

Quando no caminhar surgiu a saída rumo à edição também em português, senti que os ventos estavam soprando a favor. Como a tradução preservava o padrão métrico poético e, consequentemente, rítmico, deu para aproveitar todas as gravações vocais, instrumentais e de percussão corporal, e a Luana pôde cantar tudo em português, idioma que ela domina muito bem.

Na discussão com o André, propus um conceito percussivo, que pudesse oferecer às crianças uma música de caráter artesanal, e ele convidou o mestre André Hosoi e a mestra Dani Zulu, integrantes do grupo Barbatuques, para, juntamente com ele, cuidarem da parte instrumental. Cada mestra e cada mestre participante aportou um conjunto de saberes, vivências, técnicas e sentimentos que deram forma e beleza ao trabalho.

O que torna “Que noite, Torito!” (em português) e “¡Qué noche, Torito!” (em espanhol) uma obra artesanal é o calor táctil da sua produção, com cada mestre manipulando os seus meios, em um contexto de estética própria e de interação em uma comunidade de criadores independentes. São vários trabalhos que saíram de diferentes estúdios caseiros para formar uma obra: Luana em Montevidéu, Dani em Joanópolis, os dois Andrés em São Paulo, Nathália e eu em Fortaleza.

Sim, esse artesanato ao qual me refiro foge da noção tradicional do termo no que diz respeito à especialização de cada mestre e à divisão do trabalho na produção de uma obra múltipla, que inclui minhas parcerias musicais com as mestras Ângela Linhares e Bia Bedran e com os mestres Abidoral JamacaruDilson PinheiroRonaldo Lopes e Tarcísio Sardinha, a masterização do mestre Homero Lotito, as partituras do mestre Tarcísio Lima e a edição de arte do mestre Mauricio Rindeika Seolin.

Ouça o disco em português AQUI
Ouça o disco em espanhol AQUI

No espírito artesanal, não é a técnica nem a tecnologia que determinam o sentido da obra, mas o controle integral da produção. Como sempre faço em meu trabalho de combinação de literatura e música, a editora cuidou da edição do livro em si e eu assumi a produção fonográfica. As músicas não entram no contrato de edição. É a parceria da flor com a abelha: um oferece o néctar e o outro a polinização.

Facilita muito também o combinado que tenho com minhas parceiras e parceiros de composições sobre a liberação mútua e de maneira automática em casos de gravação em projetos pessoais. Ou seja, a produção de fonogramas, feita com ônus e bônus de cada um, não implica em custo para quem grava; apenas, obviamente, o compromisso de dar o devido crédito autoral. Tudo isso faz parte de uma familiaridade artesã, enquanto relações comunitárias e ausência de formalismos.

O certo é que, ao contemplar o livro e o áudio do Torito, sinto as muitas mãos que os construíram e o quanto eles refletem um campo cultural movido pela cumplicidade alternativa, pelo respeito à infância e pela atenção especial ao direito de meninas e meninos de terem acesso à literatura e às artes em afetuosa modelagem artesanal.

Fonte
RIVISTA Nº 244