Entrevista com Flávio Paiva
Fortaleza, 30 de janeiro de 2012

Entrevista em PDF

Site de cultura livre

Eriberto Sales, da FM Universitária 107,9, entrevista Flávio Paiva no lançamento do seu novo site, na sede da Cooperativa Pirambu Digital.

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Eriberto Sales e Flávio Paiva em foto de Raíssa Veloso.

Eriberto Sales. O que seu novo site vai disponibilizar para os internautas e para a comunidade em geral?

Flávio Paiva. Estamos disponibilizando parte significativa de todo o conteúdo que eu produzi ao longo de trinta anos de trabalho, com exceção daqueles documentos que ainda não foram localizados ou adequados para mídias digitais e das obras cedidas com exclusividade em contratos de exploração comercial. O site já tem mais de 450 artigos, cerca de 80 partituras, mais de 10 ensaios, gravações de shows musicais, palestras, conferências, debates, fotografias, recortes de notícias e entrevistas, referências de publicações, enfim, uma quantidade bem razoável de textos, sons e imagens prontos para serem compartilhados, impressos e distribuídos livremente. Evidente que coloquei restrições quando a utilização for para uso comercial, político, religioso e em casos de alteração da obra e produção de trabalhos derivados. Nesses casos preciso avaliar e, para isso,o site tem um e-mail para facilitar o diálogo. Talvez um dia a gente não vá precisar de nada disso, mas enquanto perdurar o jogo de desinformações que as grandes empresas do mercado de conteúdos promove para ganhar muito dinheiro com a desconsciência que produz, o cuidado com o que é disponibilizado ainda é imprescindível. Este é um problema que ocorre também com as obras em domínio público; ao invés de serem compreendidas como patrimônio do coletivo são muitas vezes tratadas como de ninguém, como algo que pode ser depredado sem o menor escrúpulo.

Eriberto Sales. E por que você defende uma cultura cada vez mais livre no acesso à internet?

Flávio Paiva. A construção da humanidade é uma construção pública e coletiva, embora o indivíduo tenha uma parte que é sua, da sua inventividade, do seu esforço de contribuição pessoal. Observando o todo, podemos notar que em tudo o que fazemos boa parte vem do que herdamos e cabe a nós colaborar para que isso continue evoluindo. Então, procuro entender a minha produção intelectual, a minha produção autoral, como parte de um processo. Neste aspecto, ela não é só minha; ela está dentro de um grande redemoinho por onde circulam as manifestações do pensamento e da espiritualidade. Em tese, é isso. Acontece que existe um lado menos sublime, embora humano, nessa questão de livre acesso, que é a exploração comercial não autorizada, por meio da qual alguns poucos ganham muito dinheiro sobre o que se produz.

Eriberto Sales. Na sua opinião, o que pode e deve ser compartilhado livremente na internet?

Flávio Paiva. Costumo utilizar o conceito de logradouro público quando me refiro ao que deve ou não ser postado nas infovias. Digo sempre aos meus filhos que só coloquem na web o que eles se sentirem à vontade para colocar em uma praça. Assim como as praças, a internet precisa de algumas bases reguladoras, desde que essas bases não tirem o seu espírito principal de via pública democrática. Isso vale inclusive para os espaços privados que reúnem pessoas virtualmente, como Orkut, Facebook e Twitter, que são empreendimentos comerciais, que oferecem serviços de relacionamento.

Eriberto Sales. Que avaliação você faz do trabalho da Cooperativa Pirambu Digital, que desenvolveu o seu novo site?

Flávio Paiva. Estou muito satisfeito com o resultado; eles demonstraram muita competência, tanto na compreensão da minha necessidade, quanto na execução do projeto em si. Não procurei esses jovens para “ajudá-los”, dentro da concepção de “ajudar os jovens carentes” de um bairro historicamente vulnerável; procurei-os pelo que eles têm a oferecer, pelo sentido de pertencimento que revelam em suas atitudes e pelos saberes, senso de auto-organização e formas de relacionamentos que individual e coletivamente acumularam desde que o lugar era apenas campo de concentração de refugiados das secas e favela problemática. Não gosto dessa conversa valorativa e confinante da insuficiência, que classifica as pessoas pelo que elas não têm. Falei isso para o Hélio Pinheiro, que é o diretor de tecnologia da Pirambu Digital, com quem mais me relacionei no processo de desenvolvimento do site. Disse para ele que estava procurando a Cooperativa pelo que os seus cooperados têm de melhor, em termos de atendimento humano, de interesse no que fazem e de conhecimento tecnológico para realizar o que eu estava demandando. O professor Mauro Oliveira, que é o idealizador da Pirambu Digital, traduz tudo isso como um sonho colocado em prática por um processo compartilhado de expectativas de jovens, na sua vontade de ser feliz, de realizar uma felicidade que não seja imposta de fora para dentro, mas um desabrochar do ser, que seja capaz de encarar e de usufruir da beleza e da riqueza que o sol traz todos os dias, como uma oportunidade de dignificar a vida. Então, o que percebo de mais grandioso em tudo isso é o fato desses jovens terem seu potencial comprovado e isso não ser apenas uma teoria, mas uma prática da qual posso dizer que sou testemunho.

Eriberto Sales. O professor Mauro disse que o lançamento do seu site na Pirambu Digital é um marco, não pela página em si, mas pela sensibilidade e espírito cidadão que você aporta ao projeto. Ele está pensando em uma nova fase da Cooperativa e para isso pediu a sua colaboração.

Flávio Paiva. Ele me falou da possibilidade de dinamizar mais a Pirambu Digital, de modo que o projeto seja cada vez mais fortalecido na sua dimensão econômica e social no bairro, mas também que transborde e possa ser replicado em outras comunidades, através de políticas públicas. Acredito nisso e contribuirei com o que estiver ao meu alcance. Em um país como Brasil, que está conquistando uma grande oportunidade de se colocar no cenário mundial como uma nação importante, o fortalecimento e a multiplicação de experiências exitosas como essa da Cooperativa contribuem efetivamente para assumirmos o que uma nação importante pode fazer. E o primeiro passo é tornar o trabalho dessas e desses jovens mais conhecido, mais requisitado, para que o projeto encorpe bem e se desenvolva em situação menos sufocante do que vem ocorrendo. Sinto-me um participante dessa movimentação. Falei para a Josilda, que é a presidente da Cooperativa, que o principal argumento que tenho para reverberar o trabalho deles é o meu próprio site, que ficou muito bem feito. Não há discurso melhor do que mostrar o resultado do que se faz. E eles fizeram tudo, com a competência e a qualidade esperada. Comprovado esse potencial realizador e assegurada a sua sustentação, tem-se um modelo de geração de renda e de perspectivas sociais que prioriza as pessoas, sem cair no estigma do carente. Por esse viés, a Pirambu Digital não é apenas um projeto de um bairro de Fortaleza, mas um ensaio de sociedade que tem tudo para se juntar a tantos outros nas buscas por novos significados. Outro dia, assisti atento à entrevista do Criolo no programa “De Frente com Gabi” (SBT, 18/01/2012) e ao ser perguntado pela Marília Gabriela como ele se sentia sendo um cara tão talentoso, respondeu que não se vangloria disso porque de onde ele veio, se as pessoas tivessem a oportunidade que ele está tendo, todas estariam enchendo esse Brasil de boa música e de bom trabalho. Criolo é filho de cearenses, nascido na periferia paulistana e, com seu CD “Nó na orelha” (2011) conseguiu ampliar o seu reconhecimento público como uma das principais revelações da música plural brasileira. No fundo, no fundo, estamos falando de direito de oportunidade; oportunidade de desenvolver nossos talentos, de mostrá-los e de vê-los beneficiando a si e ao todo. É isso que chamo de cultura livre.