Infância e luta pelo Direito
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quintas-feiras, 02, 09 e 16 de Outubro de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Parte I, publicada em 02 de Outubro de 2008
As discussões sobre os impactos da cultura do consumismo na construção contemporânea da infância, ocorridas no 2º Fórum Criança e Consumo, evento realizado em São Paulo pelo Instituto Alana, no período de 23 a 25 de setembro passado, suscitaram revelações e revisitas a pontos-chave desse tema social tão grave quanto urgente. Em mim, provocou uma visão não imaginada, que foi a de pensar na estátua símbolo da justiça brincando com uma criança no colo. Com a espada do vigor das deliberações e com a balança do rigor do equilíbrio do julgamento, mas sem a venda nos olhos.
Em retrospecto proustiano tento compreender como essa imagem chegou à minha mente trazendo a cena de uma criança no aconchego da figura da deusa do Direito. Uma gravura que, de modo especial, passou a chamar a minha atenção para a possibilidade de a justiça aproximar mais seu rosto dos olhos telepáticos de meninos e meninas, de forma que possa enxergar com os próprios olhos o quão tem sido massacrante a desconstrução da infância e, assim, poder intensificar seu apoio no combate aos excessos.
Re-escuto a fala da Ana Lúcia Villela, presidente do Instituto Alana, entidade mantenedora do Projeto Criança e Consumo, reforçando sua convicção de que o marketing infantil afeta as nossas escolhas de vida, induzindo os modos “como definimos a felicidade e como medimos o nosso próprio valor”. Com essa manifestação de negação das ações abusivas do mercado, Ana Lúcia deu o tom do debate; um tom afinado nas discussões do marketing dirigido à criança, como questão de saúde pública, de violência simbólica, de infortúnio ambiental, enfim como um insustentável problema social.
As vozes das crianças, presentes por meio do documentário “Criança, a alma do negócio”, de Estela Renner, e do desenho animado “Como seria uma vida sem publicidade”, feito pela meninada do Jardim Pantanal, no bairro de São Miguel Paulista, exibidos durante o evento, denunciam um retrato perturbador da realidade e da causalidade da comunicação mercadológica na infância. A educadora Regina de Assis, presidente da MultiRio, ressaltou o quanto é necessário oferecermos mídia para meninas e meninos se pronunciarem. Entendo que isso significa estimular a participação infantil sem interferência no modo original de comportamento social e sem cobrar das crianças responsabilidades adultizantes.
A professora Solange Jobim, psicóloga da PUC/RJ, reforça essa tese de construção conjunta ao dizer que os adultos precisam criar espaços de cumplicidade com as crianças no pensar sobre o consumo, de modo que elas também participem do desenho do novo lugar ocupado pela infância na vida social. Referindo-se aos filmes exibidos, ela realça o quanto é importante observar as falas das crianças como reflexo do que elas têm recebido da sociedade.
No estágio atual de modelagem social da infância é indispensável que meninas e meninos tenham a oportunidade de experienciar o ativismo, segundo a psicóloga e educadora Susan Linn, da Universidade de Harvard, EUA, preservando as etapas de desenvolvimento, sem pular fases. Esse caráter de educação para o exercício lúdico dos direitos civis e políticos é condição indispensável para a formação da consciência do compromisso com a sustentabilidade.
Susan, que antes e acima de tudo é uma artista do teatro de mamulengos, pondera que respeitar a infância e considerar suas questões não significa que se deva dar a ela uma autoridade que ela não está preparada para assumir. “Um dos problemas criados pela publicidade dirigida à criança é que o mercado dá essa autoridade indevida aos meninos e às meninas, tornando-os intolerantes diante das regras sociais”. Diante do assédio permanente da publicidade, Solange Jobim propõe a retomada do diálogo com a infância na relação com o brincar.
Marcelo Sodré, advogado e professor da PUC/SP defende que precisamos observar a publicidade como parte de um sistema social que está doente em sua busca de felicidade associada ao objeto. Por isso, não é produtivo tratar o publicitário como o vilão e a sociedade como vítima. As razões que ele encontra para o ataque à publicidade abusiva, especialmente aquela dirigida à criança, é o fato de ela ser a responsável pela ligação de dois pontos, ou seja, de ser o transmissor do vírus do consumismo.
O aumento da reação da sociedade diante da publicidade desregrada está ocorrendo porque nos últimos vinte anos essa prática tem sido mesmo muito exagerada, segundo Sodré. Ele menciona a inconsistência do manifesto dos publicitários, produzido no IV Congresso Brasileiro de Publicidade, realizado de 14 a 16 de julho passado, em São Paulo, nos seus argumentos de denúncia e repúdio ao que chamam de “iniciativas de censura à liberdade de expressão comercial, inclusive as bem intencionadas” (item a). Com esse “inclusive”, o documento aprovado na sessão plenária de encerramento do encontro nacional de publicidade assume a existência das más-intenções nesse meio.
Em linhas gerais, é normal que a publicidade seja reprodutora de modelos dominantes vigentes, tal como a ideologia do consumismo na atualidade. Olhando para este aspecto, Marcelo Sodré reflete que na falta de argumentos convincentes o mercado publicitário parte para a produção de confusões conceituais, misturando liberdade de expressão comercial com liberdade de imprensa e liberdade artística. Lembra que, mesmo nos casos em que uma criação artística é posta a serviço da publicidade e da propaganda, é preciso entender que nessas situações ela muda de regime, muda de estatuto. Impõe-se neste caso o desafio da desmistificação da idéia de que a publicidade é uma atividade artística.
Não há dúvida de que existem os publicitários que tenho chamado de pedófilos; aqueles que sentem prazer mórbido na perversão de crianças. Acredito, porém, que esses sejam a exceção. Acredito também que a grande maioria desses profissionais pode ainda não ter se dado conta dos efeitos nocivos do consumismo para a sociedade e para o meio ambiente. Dentro da roda viva movida pelas forças econômicas, responsáveis ou não, nem todo mundo está desperto o suficiente a ponto de tentar mudar esse quadro. Ladislau Dowbor, economista e professor da PUC/SP, argumenta que o maior problema na relação com os publicitários é que eles confundem liberdade de expressão com liberdade de invasão.
A perturbação do entendimento mencionada por Ladislau é possível porque não há clareza na separação entre a lógica do sistema que se nutre do consumismo e a lógica da sua avaliação. Para Gilberto Dupas, economista e coordenador-geral do Grupo de Conjuntura Internacional da USP, “confunde-se padrão de desenvolvimento com padrão de consumo”. Ele reconhece os méritos do Conar, Conselho de Auto-Regulamentação Publicitária, mas considerando que a publicidade tem como missão fabricar objetos de desejo, não é razoável que os publicitários cuidem sozinhos de controlar o que eles mesmos produzem. Dupas lembra que quando a sociedade questiona a publicidade o que vai para a berlinda é a alma de um sistema que faz da mentira a sua verdade comercial (continua na próxima quinta-feira).
Parte II, publicada em 09 de Outubro de 2008
A usurpação da infância por meio de indução ao consumismo, assim como o seu envolvimento em práticas de abusos sexuais, é um problema transcultural espalhado pela maioria das nações. Foi por conta de escândalos envolvendo grupos organizados que usavam crianças na produção de filmes pornográficos que os suecos organizaram em 1996 um congresso mundial para compreender e detalhar a relação da infância com a mídia. A rainha Silvia Sommerlath, que viveu dos 4 aos 13 anos no Brasil, teve uma participação importante nessa reviravolta ao defender publicamente que se as leis do país onde é majestade não estivessem de acordo com as exigências da atualidade elas deveriam ser mudadas.
Todo mundo sabia da profundidade do problema, mas a natureza do assunto produzia uma certa retração social. A rainha Sílvia rompeu esse silêncio público e interveio na questão pelo viés da dignidade humana. A população pressionou o governo sueco a patrocinar um amplo debate em todo o país para discutir a manipulação das crianças pelo mercado. A figura da deusa do Direito tirou a venda dos olhos e também abraçou a causa infantil em uma movimentação democrática que envolveu os mais diversos setores sociais e contou com uma comissão de especialistas formada sob os auspícios do Estado e o congresso aprovou uma lei que criminaliza a pornografia infantil e proíbe a publicidade para menores de 12 anos, inclusive em celular, Internet e outdoor.
Em sua fala no 2º Fórum Internacional Criança e Consumo a socióloga Cecília von Feilitzen, da Nordicom University of Gothenburg, contou que tudo o que agride valores sociais, tais como a autoridade dos pais, dos educadores, a discriminação de gênero, que preguem vantagens sobre os outros, que estimulem a coação aos cuidadores ou que utilizem personagens famosos para vendas casadas é proibido na Suécia. Mesmo assim, a população daquele país é invadida pela programação de um canal de televisão britânico, que transmite programação infantil em sueco e tem gerado um problema de controle, pois passa à esfera de conflito de legislações entre paises.
Pela revelação de Cecília nota-se que a gravidade da questão necessita ser tratada em diálogos multilaterais. Para isso, cada povo, cada país, deve se mexer e tomar pé do que está acontecendo, para poder agir nesse cenário movediço. No dia 9 de julho passado a Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara Federal aprovou o substitutivo do Projeto de Lei n° 5.921/2001, que propõe a proibição da publicidade dirigida a menores de 12 anos no Brasil. Apesar do fortíssimo lobby dos transmissores do vírus do consumismo, na feliz significação de Marcelo Sodré, essa é uma lei cujo teor agradaria em cheio a sociedade. Comparo o seu potencial de aceitação popular ao da Lei nº 11.705, a Lei Seca, que foi sancionada no dia 19/6/2008 pelo presidente Lula, impondo mais rigor aos motoristas que ingerem bebidas alcoólicas.
A voz de Cecília traz um dos tantos exemplos de controle social da publicidade dirigida à criança em outros países. Alguns desses exemplos estão organizados no livro “Por que a publicidade faz mal para as crianças”, elaborado pelo Projeto Criança e Consumo e distribuído aos participantes do 2º Fórum Internacional. A observância dessa espécie de jurisprudência internacional, objetivada em países que estão bem avançados nessa questão é bom também para esclarecer que a defesa da infância não se restringe a um levante da moral brasileira. Trata-se, portanto, de um problema de ética, o que quer dizer, de uma questão universal.
E um dos mais complexos problemas globais contemporâneos é a cultura da vaidade, na qual se nutre o consumismo. Vaidade na extensão salomônica de coisas que se vão, do passageiro, do efêmero; e no sentido mais vulgar de desejo obstinado por admiração. O psicólogo Yves de La Taille, professor da USP, menciona a mania de as pessoas associarem a si próprias às marcas dos vencedores e o fato de que trocar idéias passou a ser menos importante do que se comunicar, como exemplos dessa cultura. Para ele, somente rompendo com os códigos e padrões desse sistema de inspiração narcíseo-competitiva aprenderemos a resistir aos desejos da sua manipulação cognitiva e afetiva estabelecidos no senso do vencedor.
Essa tese é bem ilustrada com o caso do estudante que assassinou nove colegas e um professor no dia 23/9/2008 em uma escola da Finlândia e se matou em seguida. Antes de cometer o massacre e o suicídio ele se filma com a arma do crime e coloca as imagens na Internet. “A invisibilidade é terrível na cultura da vaidade”, sentencia Yves de La Taille. O parâmetro da existência colocado por ele leva à dedução de que o modo mais eficaz para resolver o mal-estar provocado pela carência de visibilidade passa pela promoção de uma educação que envolva os agentes patogênicos do consumismo.
O que mais me intriga no consumismo é que ele parece uma doença de adulto que pega em criança. O filósofo Mário Sérgio Cortella, professor da PUC/SP, traduz bem esse sentimento ao dizer que “se todos querem se mostrar, a porta está aberta para a publicidade”. Ele propõe que em paralelo a ações como as do Projeto Criança e Consumo, que visam acabar com a publicidade dirigida à criança no Brasil, a sociedade organizada trabalhe para traçar novas metodologias que eduquem não apenas as crianças, mas também os adultos.
Coisificar é um verbo transitivo direto que tem sido conjugado em todas as instâncias sociais. O resultado prático da sua aplicação é a redução da consciência cooperativa e o aumento da inteligência de competitividade. As conseqüências dessa inversão de valores se estendem desde as filas que separam meninas e meninos e a exibição grosseira de troféus na porta das escolas até a economia da salvação do mercado religioso, passando pelas famílias que ironicamente “saem de casa no fim-de-semana para comer comida caseira” como ilustra Mário Sérgio. Por essas e outras, ele atribui o fato de as pessoas, especialmente as mais jovens, confundirem o desejo como um direito.
A solução para essa crise de significados estaria, segundo o filósofo, em uma ampla reeducação coletiva, na qual o sentido de felicidade deixasse de ser associado preponderantemente aos valores materiais. Ao invés de ficar somente criticando os meios de comunicação de massa como se fora deles as coisas fossem mais saudáveis, mais puras, mais higiênicas, Mário Sérgio crê na possibilidade de aumento da compreensão do destacado papel da mídia como corpo docente em uma sociedade que não tem mais a educação limitada aos ensinamentos da família, da escola e da igreja.
Regina de Assis, presidente da MultiRio salienta que os educadores, juntamente com seus alunos, também são produtores de mídia e precisam estar preparados para dominar as ferramentas tecnológicas disponíveis e, assim, desempenharem importantes tarefas transformadoras em um processo educacional que tem como desafio superar o desvalor da privacidade, manifestado cotidianamente na “volúpia de se ver nos outros para não se ver”, sentimento encontrado em demasia na cultura da vaidade mencionada por Yves de La Taille (continua na próxima quinta-feira).
Parte III, publicada em 16 de Outubro de 2008
Os caminhos da propaganda para chegar aos consumidores infantis vão além das redes sociais digitais, da publicidade tradicional, das coberturas editoriais e das fofocas de bastidores. A preparação para o lançamento do filme “As Crônicas de Nárnia” (Disney, 2005) nos Estados Unidos chegou a promover concursos que premiavam os pastores que fizessem os melhores sermões sobre o filme em suas igrejas. As crianças estão cercadas e, como explicou a psicóloga Susan Linn no 2º Fórum Internacional Criança e Consumo, a autoridade concedida ao cinema leva os meninos e as meninas a brincarem com menos criatividade com bonecos e bonecas desses filmes, porque o roteiro já está assimilado.
A criação do hábito da brincadeira roteirizada é uma ameaça a um dos mais básicos direitos humanos, que é o direito ao exercício da criatividade. Susan provoca as pessoas a refletirem sobre essa questão da subjetividade e da objetividade no brincar, apenas incentivando-as a observarem suas próprias reações de imaginação e de racionalidade, diante de um brinquedo popular e de outro massificado. O resultado dessa experiência que qualquer um de nós pode fazer é a constatação de que em condições normais, quando brincam com fantoches, por exemplo, as crianças podem pensar por si mesmas; o que normalmente não acontece com o uso do brinquedo-produto.
O assédio da publicidade pela hegemonia dos brinquedos midiáticos, que leva muitas crianças a deixarem de lado os brinquedos e as brincadeiras criativas, é um dos pontos dos conflitos entre as estratégias das corporações “metanacionais” e os valores e interesses autênticos da sociedade civil, abordados por Gilberto Dupas. Mesmo assim, ele acha que a ação dominante dos atores econômicos mundiais não deva ser classificada de ilegal nem de legítima, já que a sua operação se dá nos interstícios de um sistema não regulado.
Movido por essa mesma compreensão Marcelo Sodré ratifica que é preciso controlar o que precisa ser controlado. As garantias de defesa da pessoa e da família diante “da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente” estão em nossos princípios constitucionais (Parágrafo 3º, II, Art. 220, da Comunicação Social). Mostrando-se afeito à sabedoria do espírito da lei ele salienta que a dignidade da pessoa humana, sobretudo na infância, deve anteceder a qualquer princípio, em caso de necessidade de compatibilização ou de hierarquização.
A bem da verdade a publicidade para crianças no Brasil vem na ilegalidade há duas décadas, considerando que o Código de Defesa do Consumidor trata como abusiva a publicidade que “se aproveite da deficiência de julgamento e de experiência da criança” (parágrafo 2º, Art. 37). Esse Código, criado pela Lei nº 8.078, de 11/9/1990, determina ainda que toda publicidade seja identificada como tal (Art. 36, Seção III, “Da Publicidade”), que “é proibida toda publicidade enganosa ou abusiva” (Art. 37) e que o ônus desse tipo de contrafação “cabe a quem patrocina” (Art. 38). Não é razoável, por conseguinte, presumir que as crianças entendam a trama das leis a ponto de poderem criar por si condições objetivas de não serem molestadas pela violação dos seus direitos.
Para Marcelo Sodré, a instituição desse código colocou o consumidor brasileiro dentro do tema da cidadania, por representar uma idéia de proteção da coletividade, quando seus valores sociais são feridos. Dentro dessa visão, ações como as do Projeto Criança e Consumo precisam ser enxergadas não como uma luta contra a publicidade e o mercado publicitário, mas na sua dimensão de promotora do exercício da democracia. O que está em pauta, segundo a advogada Isabella Henriques, coordenadora do projeto, é a oportunidade das crianças se desenvolverem como cidadãs e não somente como consumidoras.
Em meio ao que chama de contexto avassalador, em que a lógica do capital se impõe de maneira tão plena sobre considerações de ordem social e ética, Gilberto Dupas recomenda que, ao atentar para a natureza das corporações, a sociedade não deve se deter a uma crítica moral. Em analogia com a natureza selvagem, argumenta que as empresas, em si, não são boas nem más, são simplesmente movidas pela competitividade e não existe economia de mercado sem propaganda. Nesse sentido ele é favorável a regulação da publicidade como passo para a politização do consumidor, a fim de que nasça um contrapoder social capaz de dizer não a determinados produtos e serviços nocivos à saúde, a vida em sociedade e à natureza.
Zito Góes, ex-diretor de programação da MTV no Brasil e professor da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), concorda que nem os empresários nem os publicitários sejam intrinsecamente maus, embora muitas vezes sejam cínicos. Chama a atenção para o quanto é desproporcional o poder de realização dos comunicadores e das agências de publicidade e propaganda. “A publicidade conta com uma verba para um filme de trinta segundos, que muitas vezes é maior do que o orçamento de muitos programas de televisão”.
Nessa mesma angulação, o advogado José Eduardo Elias Romão, aduz que, em primeira instância, a responsabilidade social empresarial deveria ser cobrada pelo cumprimento da legislação. Pagar impostos, entregar os produtos e serviços que prometem, considerar os direitos dos funcionários, respeitar o meio ambiente, enfim, atuar como equipamento social produtivo, obedecendo as regras estabelecidas pela coletividade. Até mesmo porque, lembra bem, se todas as empresas cumprissem a Constituição, o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto da Criança e do Adolescente, não haveria a contravenção da publicidade voltada para crianças.
O pensamento de Romão, que foi diretor do Departamento de Classificação do Ministério da Justiça, me leva a pensar em um pequeno livro, intitulado “A luta pelo Direito”, escrito pelo jurista germânico Rudolph von Ihering (1818 – 1892) na segunda metade do século XIX e que virou um clássico dos estudos do comportamento humano, por tratar o Direito como o produto social que ele é. Posto numa condição de objeto de construção coletiva, o Direito tem associado seus princípios a motivos práticos e isso implica dizer que as leis e suas aplicações exigem habilidades e intervenções políticas que não estão ao alcance da compreensão infantil.
A justiça tem, portanto, obrigação de olhar com distinção protetora para a integridade de meninos e meninas. O filósofo Mário Sérgio Cortella dá o sinal: “o mundo que vamos deixar para os nossos filhos depende dos filhos que deixaremos para o mundo”. Ações de cidadania, como as que são catalisadas e levadas a efeito pelo Projeto Criança e Consumo, colocam o Direito como parte da luta social cotidiana. E nessa luta, Ana Lúcia Villela, que é pedagoga e idealizadora do projeto, considera o marketing dirigido à criança como um dos grandes responsáveis pelos problemas de obesidade, distúrbios alimentares, sexualização precoce, materialismo, individualismo, estresse familiar, diminuição de valores culturais e do brincar criativo.