Flávio Paiva escreve a Carta da Caatinga a pedido de Roberto Macêdo, um dos fundadores da Associação Caatinga, com a finalidade de chamar a atenção para a urgência e a necessidade de cuidados com esse bioma exclusivo do Nordeste brasileiro. A Associação Caatinga, criada em Fortaleza, no ano de 1998, e é mantida por um fundo patrimonial instituído por Samuel Johnson (das Ceras Johnson), tem como missão “promover a conservação das terras, florestas e águas da caatinga para garantir a permanência de todas as suas formas de vida”.

Carta da Caatinga

Flávio Paiva

A caatinga brasileira vive um quadro dramático. Dos 11% que essa cobertura vegetal ocupa do território brasileiro, resta menos de um por cento de área conservada. Descaso que, provocado pela destruição dos recursos naturais, tornou mais graves os níveis de qualidade de vida de 20 milhões de pessoas que habitam a região. Mesmo agredida, a natureza teima em nos brindar com aroeiras, braúnas, angicos, cumarus, umbuzeiros, pereiros, juazeiros, imburanas e faveleiras floridas. O cheiro de babugem ainda é o mesmo nas primeiras chuvas e o manto estrelado do céu cobre de exuberância as noites frias do sertão.

Nos 4.750 há da reserva Serra das Almas, que a Associação Caatinga adquiriu no município de Crateús-CE para conservação da biodiversidade, já foram identificadas dezenas de espécies de anfíbios, répteis, aves, mamíferos e raridades botânicas da caatinga e do carrasco. A caatinga e o carrasco são duas entidades xerófilas, semelhantes quanto à fisionomia, pela queda das folhas, e dessemelhantes quanto às espécies da fauna de cada uma.

Por muito menos, outas causas têm atraído a atenção do mundo. É imprescindível acolher a caatinga no nosso compromisso em defesa dos valores mais indispensáveis ao futuro da humanidade.

Embora diante dessa dura realidade, ainda é tempo de cuidar da recuperação do nosso semiárido. Da mesma forma que no interior as pessoas deixam um ovo no ninho para servir de chama às galinhas, cada pequena reserva que resta é o indez com o qual o ecossistema incita a nossa atenção. Precisamos reunir todos os esforços possíveis para ampliar a conscientização e a participação em defesa da caatinga e por um desenvolvimento sustentável no semiárido. Precisamos adequar o manejo da cultura de subsistência e comprometer o crescimento econômico com o meio ambiente.

A degradação ambiental das áreas semiáridas do mundo é um problema com relevantes impactos econômicos e sociais. No Brasil, a situação do chamado polígono das secas compromete a sustentabilidade do Nordeste, região com mais de 50% de cobertura vegetal de caatinga. O Estado do Ceará tem quase a totalidade do seu território no semiárido. A vulnerabilidade desse ecossistema, somada à ação predatória da agricultura tradicional e à implementação de políticas equivocadas de desenvolvimento, têm resultado em um avançado e preocupante processo de degradação rumo à desertificação.

Mesmo violentada e desprotegida, a caatinga insiste generosamente em ceder até os seus últimos gravetos e cipós para os fogões a lenha de mais da metade das famílias nordestinas. Suas raízes, folhas e cascas medicinais curam as mazelas dos desassistidos. Como se fosse pouco, os carvoeiros ultrapassam os limites das leis ambientais e do bem senso para fornecer madeira aos fornos das indesejáveis empresas antiecológicas. As carpintarias não querem perder tempo com reflorestamentos e não parecem notar que, agindo assim, serram o próprio destino. As cercas ramadas de jurema, marmeleiro e sabiá riscam, tortuosas e espinhentas, os quadrantes dos cactos perdidos na paisagem desolada de beleza rude.

Para eliminar as sementes silvestres, muitos agricultores praticam a queimada, impermeabilizando o solo, reduzindo o lençol freático e corroborando para a diminuição progressiva da sua fertilidade. Os improvisos de irrigação salinizam o solo e ampliam a erosão, também provocada pelos desmatamentos feitos de maneira inadequada para a criação de pasto com finalidade de manutenção de rebanhos por ocasião das estações chuvosas. Fragilizado e exposto aos raios firmes do sol equatorial, o solo é dissipado pela ação das chuvas e dos ventos, assoreando os leitos dos rios e as bacias dos açudes, restringindo a capacidade de armazenamento de água.

A devastação da flora leva em seu bojo a diversidade da fauna. O gato maracajá, o veado, a onça vermelha e tantos outros bichos ficaram sem ter para onde correr. A extinção começou a chegar ao preá, teiú, tamanduá, caititu, raposa, camaleão, urubu-rei, avoante, nambu, graúna, seriema… canário e asa branca são exemplos de aves e pássaros que voaram do cenário catingueiro. A caça de subsistência, a venda descontrolada para rinhas urbanas… as gaiolas. Empobrecemos. Não é justo que fiquemos apenas com os pardais e as abelhas italianas. Não é racional perder os últimos favos de jandaíra e de enxuí que adoçam a vida no semiárido. A reabilitação da caatinga tem jeito. Depende da nossa vontade e da nossa ação.