Em seus 25 anos de ações cidadãs nas favelas e periferias brasileiras, a Central Única das Favelas (Cufa) chega ao seu momento mais desafiador, que é a luta para que seja colocada em prática uma ideia transformadora que tem inicialmente a assinatura de 201 deputadas e deputados federais, e que foi lançada quarta-feira passada (14/6) em Brasília, com o apoio presencial de ministras, ministros e outras autoridades republicanas: a Frente Parlamentar em Defesa das Favelas e Respeito à Cidadania de seus Moradores.

Essa ação política suprapartidária terá como secretário-executivo o ativista cearense Preto Zezé, ex-presidente e atual conselheiro da Cufa e integrante da Frente Nacional Antirracista (FNA). Com o compromisso de pensar e viabilizar projetos de lei sobre segurança, urbanização, educação, cultura, esporte e empreendedorismo, a Frente das Favelas conta, antes de tudo, com o potencial das forças locais em situação real coletiva, seus aprendizados e desejos no drama do necessário para viver.

Ao propósito dessa frente parlamentar, mas também de cidadania, aplica-se perfeitamente o conceito de justiça espacial, do geógrafo francês Bernard Bret, que propõe que as questões sociais sejam pensadas a partir do território; uma geografia humana focada na dimensão espacial para o tratamento da construção do justo, desenvolvida à luz da Teoria da Justiça do filósofo estadunidense John Rawls (1921 – 2002), que comentei no artigo “Justiça espacial por Bernard Bret” (V&A, 13/06/2023).

O movimento de combate às desigualdades a partir do escopo territorial das favelas e periferias segue em sentido oposto às pregações do pensador de mercado indo-estadunidense C. K. Prahalad (1941 – 2010), resumidas em seu livro “A riqueza na base da pirâmide – como erradicar a pobreza com lucro” (Bookman, 2005), no qual orienta as corporações de mercado a como ganhar dinheiro com as classes menos favorecidas, que, em sua maioria, encontram-se nas favelas e periferias.

Instalação em papelão reciclado do artista carioca Sérgio César. Reprodução/Internet

A Frente das Favelas afasta-se dessas armadilhas do capitalismo de inclusão e parte para o campo da concidadania, onde não cabe o estigma degradante do carente. Chegar às soluções sociais entrando pelo território é uma questão de respeito a quem é agente de origem dos atos coletivos, as moradoras e os moradores de cada lugar. Em outras palavras: as pessoas precisam participar de toda intervenção nas comunidades onde habitam, desde a elaboração até o usufruto, rompendo com o estereótipo de que favelas e periferias só merecem obras, equipamentos, serviços públicos e formação de má qualidade.

Em vez de comunidades de consumidores de baixa renda, como queria Prahalad, entendo que essa frente está voltada para comunidades de cidadania ativa, como propõe Bret pelo olhar da justiça territorial. É essa inversão de perspectivas que muda também o sentido de empreendedorismo que tem sido trabalhado pela Cufa. Tomando como parâmetro a justiça espacial, em vez de lançar mão do mercado para atingir o social, essa ação será exitosa se for possível escapar do empreendedorismo individualista neoliberal para promover uma economia de base comunitária.

O primeiro passo conceitual está dado: a Frente Parlamentar em Defesa das Favelas e Respeito à Cidadania de seus Moradores não pretende discutir o que é ou não favela, mas o que a favela e as periferias podem se tornar. O espaço de confinamento de pessoas cujo destino é manter e produzir bens para privilégios e concentrações de riquezas deve dar lugar a bases iguais para todas e todos, o que em Bret e Rawls constitui a plataforma de igualdade jurídica, política e democrática.

Fonte
https://mais.opovo.com.br/colunistas/flavio-paiva/2023/06/19/frente-das-favelas-e-justica-espacial.html