Santiago e a invenção do si
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 20 de Setembro de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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O mordomo Santiago Badariotti Merlo (1912 – 1994) trabalhou durante 30 anos com a família Moreira Salles, na mansão da Gávea, onde hoje funciona o Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro. Quando completou 80 anos de idade, ele aceitou abrir a intimidade do pequeno apartamento onde morava, no Leblon, para expor o seu saber fantasioso em um documentário de João Moreira Salles, filho do seu ex-patrão, o eminente empresário, político e diplomata Walther Moreira Salles (1912 – 2001). O filme, que inicialmente deveria mostrar a relação de afetiva curiosidade que o diretor tinha com Santiago, desvenda, entretanto, outras dimensões da condição humana.

O nome do documentário, que está em cartaz no Espaço Unibanco Dragão do Mar, é o próprio nome do mordomo: Santiago. Trata-se de um filme de desenredo, no qual o mordomo não é o culpado. O fluxo narrativo está no que o espectador consegue sentir nos gestos e nas falas do protagonista. O texto do diretor João Moreira Salles, que aparece na voz do seu irmão Fernando, organiza as seqüências, estabelece nexos, mas não entrega o sentido da história. Faz às vezes de coadjuvante e é Santiago, o mordomo, quem diz. A leveza encantatória de Santiago se dá pela prudência da sua vaidade, no sentido original de que tudo se vai, com a qual ele seduz o espectador a ser o terceiro narrador da obra.

Comecei a ver o documentário como uma obra que trata da questão da memória dos lugares em que vivemos, com realce a pessoas que tiveram importância diferenciada em nossas vidas. Depois fui contando para mim mesmo que tinha algo mais, considerando que o mordomo Santiago era uma figura incomum. Até que percebi não se tratar exatamente de uma história. Fui ouvindo também os comentários imaginários que surgiam de uma e outra pessoa, cujo jeito de ser atiçou a minha curiosidade ao longo da vida. Chegou a um ponto em que nada do que eu vinha compreendendo parecia fazer sentido. Foi quando argumentei silenciosamente que Santiago é um documentário sobre o exercício prático do imaginário.

Resolvi que melhor do que tentar compreender o filme seria mais proveitoso, deixar-me aberto ao ilusionismo social de Santiago na sua maneira de ser absolutamente independente dos desígnios da realidade. A boa arte é aquela que nos livra da intenção do autor. E assim, sem querer entender nada, vi um Santiago considerado por sua própria imaginação, sua facilidade de lidar com as diversas faces de si mesmo. Ele transitava por tudo e por todos para ficar consigo mesmo. Tinha uma mente de funcionamento abstrato, mesclada por imagens desejantes, neuróticas e poéticas, direcionada, contudo, para o pragmatismo dos afazeres do dia-a-dia. Agia pela força do mundo ativo, do chamado “animus”, ao mesmo tempo em que o seu processo mental recorria à passividade do seu “anima”, princípio sensível que o movia a se traduzir na beleza dos lugares e das pessoas que admirava.

Fotograma por fotograma fui me convencendo de que a aplicação dessas duas dimensões míticas do psiquismo é o objeto do filme de João Moreira Salles. Dentro de um mundo aristocrático, Santiago criou um paralelo extraordinário de aristocracia para se apresentar sem conflitos diante da aristocracia do mundo real. Ao se colocar de igual para igual, pelas janelas abertas do mundo onírico, ele construía sua prevenção a rompantes de baixa auto-estima, ansiedade e estresse da sua profissão. As imagens de síntese com as quais se agarrou o ajudaram a desenvolver um método de convivência com a verdade que nem é a verdade socrática, do verdadeiro ou falso, nem a maniqueísta, do bem e do mal.

Pela eloqüência dos seus devaneios, ele conseguiu transformar o cotidiano em um produto de si. Era um apaixonado pelas histórias de glamour dos grandes palácios e das dinastias mundiais. Assimilava tudo isso com alegoria e sempre à margem da filtragem do certo e do errado, como forma de se sentir acariciado por sua intuição visionária. Santiago experienciava o mundo além dos cinco sentidos que apóiam a percepção clássica, por ter a inspiração da vida como companheira inseparável. Essa inspiração era a sua via de acesso a uma nova ordem de verdades, estabelecida pela fertilidade da sua criação.

Santiago produzia diariamente páginas e mais páginas de textos, contando de vidas portentosas que iam de nobrezas internacionais a celebridades da cultura. Em mais de oitenta anos de vida, datilografou cerca de 30 mil páginas, todas guardadas em blocos temáticos e com referências cronológicas. Parte escrita na língua italiana, de sua ascendência; parte no espanhol, de sua origem argentina; parte em inglês, do aprendizado de suas andanças pelo mundo; parte em português, pela metade do tempo de sua vida vivido no Brasil; e parte em… digamos, “santiaguês”, o pidgin do seu eu. O documentário mostra uma estante com blocos e mais blocos de uma escrita aparentemente sem destino, sem busca de leitores, talvez apenas para autenticar o próprio imaginário de Santiago.

O filme de João Moreira Salles não aborda a vida interior do mordomo da sua família, nem, tampouco, discorre sobre a sua vida exterior. É um filme que mostra o estabelecimento de um vínculo direto de si a si em alguém que foi capaz de preencher-se de conteúdos arquetípicos para, com eles, forjar sua desenvoltura na realidade objetiva. A meta-ontologia do si consigo, reverenciada no filme, revela-se na autonomia que Santiago tinha de poder se levar a qualquer lugar, experimentar qualquer situação e viver o epigrama dos que se narcisam ao ponto mais sensível da ingenuidade para, assim, poder alcançar o amor ao esforço e a condescendência.

Santiago era livre. Usufruía, inclusive, da liberdade de gostar de ser mandado. Na cena em que ele aparece rezando em latim, o poder do diretor do documentário soma-se ao do filho do patrão, por meio da voz que ordena Santiago a rezar mais devagar e com as mãos juntas. E ele repete tudo com uma satisfação sublimada. Observando essas tomadas, comentei para mim o quanto Santiago se sentia integralmente no jogo da magia do cinema, como personagem e como ator.

Pelo filtro dessa condição ambígua Santiago abordava todas as coisas cabíveis… ou como ele diria, “de omni re scibili”. A anti-proposta documental de João Moreira Salles é enriquecida também pela crueza da finalização do documentário em si, devida intencionalmente a razões psicológicas e existenciais do diretor. De si a si, o bom contraste da obra termina por salientar a figura do mordomo e sua lição de que o sentido da vida está nas coisas e nos gestos mais simples, como no plano detalhe da “dança das mãos” do velho e altivo serviçal.

Santiago aconteceu além dos fatos do seu cotidiano. Pelo que o documentário de João Moreira Salles expõe, o que mais o distinguiu na vida foi sua habilidade de agir na realidade sem depender dela. Ele tinha a capacidade de se reconhecer na prática da fantasia de si consigo. Atuava com disciplina em seu universo ilustrado, ao mesmo tempo em que se dava ao luxo de vadiar pelo mundo de qualquer um, em trilhas sonoras de piano e castanholas, que gostava de tocar. Por ser um documentário em que a imperfeição da arte aparece deliberadamente, Santiago mostra bem a desenvoltura do seu protagonista no complexo jogo da existência entre as normas sociais e a invenção do si.