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Mais do que crianças, meninas e meninos são pessoas e, como tais, sensíveis à realidade no que o real tem de concreto, imaginário, simbólico, estético e espiritual. Apropriam-se dos saberes e conhecimentos circundantes por meio da ação individual e, assim, tendem a ser consumistas quando se desenvolvem em ambientes dominados pelas práticas do consumo exagerado e desnecessário.

Com verdades fabricadas nos aparelhos de significar da publicidade e da propaganda, o consumismo impõe à infância a experiência do pensamento anticultural, limitador da aprendizagem metacognitiva e inibidor da vida comunitária integral e integradora dos meios sociais físicos e virtuais. Asfixia o lúdico, reduz seus seguidores ao instinto de sobrevivência e constitui fonte de poder para quem o patrocina.

A gravidade dessa situação requer atenção especial aos traços prevalentes do fenômeno alienante que institucionaliza o consumismo como obrigação social. Embora muitos deles estejam ocultos nas aparências, há como frear seus motivadores emocionais e intelectuais, abrindo espaço ao que realmente nos dá consistência de existir, que é a energia cultural, com seus quereres, fazeres, ideias, moral, jeito de ser no mundo e regras comuns.

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Na sociedade do consumo exacerbado é a condição de consumidor que, em seu fundo falso, distingue as pessoas através de atos simbólicos disseminados por argumentos de inserção, visibilidade e ascensão social. Tanto quanto a guerra, o consumismo é uma ocorrência sociopolítica e econômica de extrema vocação destrutiva, no que carrega de indesejável em sua essência como potência de desperdício e insociabilidade.

As crianças confinadas nesse mundo de esbanjamento só criarão condições de escapar do campo de força da redoma ideológica que as priva do tempo da infância, se tiverem um repertório cultural experienciado de forma sensível. E a beleza pode ser descoberta por todos, quer nas manifestações da natureza ou da cultura. O belo está sempre em algo provocando emoção estética e nos oferecendo razões exploratórias.

Somos seres obrigados a aprender, diz o antropólogo e educador carioca Carlos Rodrigues Brandão, segundo o qual “cultura é o mundo que criamos para aprender a viver” (p.15). Mas é também a transformação do ambiente por meios técnicos, no entendimento do músico e pesquisador mexicano-brasileiro, Carlos Velázquez: “Uma técnica bem aplicada é um exercício prático de negociação pelo equilíbrio com o ambiente e, como tal, base insubstituível para o exercício reflexivo em profundos níveis de abstração, quando o risco de desligar-se do real é ponderado no processo” (p.245).

O caráter de alheamento provocado pelo consumismo neutraliza a aprendizagem integral nas culturas relutantes porque coloca o comprar acima da reciprocidade nos valores da família, da educação, da arte, da religião, da ciência e das esferas públicas. Para o pensador neofrankfurtiano Jürgen Habermas, o caminho para o fortalecimento da infância é possibilitar à criança experiências da cultura, mesmo no jogo desigual com os ambientes impregnados de mensagens publicitárias e de propaganda, vendendo desejos simulados.

No Brasil, as ações promovidas pelo Projeto Criança e Consumo, do Instituto Alana, no combate aos assédios à criança por parte da comunicação comercial, têm sido exitosas, sobretudo por efetivamente colocarem o tema na agenda social e política do país. Trata-se, contudo, de um avanço paciente, considerando que “os processos de comunicação dos grupos estão sob a influência dos meios de comunicação de massa, de modo imediato ou, o que é mais frequente, intermediado por líderes de opinião”, no dizer de Habermas (p.  286).

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Constata o teórico baiano Muniz Sodré que a centralidade do poder social se confunde cada vez mais com os dispositivos de controle da informação: “A grande transformação privilegia a dimensão técnica do homem, em tal magnitude que a forma da consciência contemporânea é fundamentalmente tecnológica (…). Não é mais o Estado, e sim o mercado global, que fornece os principais cenários de identidade” (p. 13). E a ideologia que dá sustentação a essa realidade é o consumismo.

Uma das armadilhas que podem ser atribuídas aos tradicionais indutores de senso comum, a que se referem Habermas e Sodré, na propagação do consumismo, é a diluição do termo cultura, tanto na sua classificação pelos departamentos de marketing das empresas, quanto pela assimilação de expressões do tipo cultura digital e cultura de rede por parte dos usuários das novas tecnologias de comunicação e de relacionamentos virtuais.

A cultura foi atingida pelo mesmo torpedo semântico que produziu a deturpação da palavra ética. Tudo virou ética, desde a moral da bandidagem até a moral dos simulacros religiosos. A pulverização do sentido de cultura corrompeu seus domínios conceituais, levando essa palavra a ser tão exaustivamente citada a ponto de perder importância no campo social. Isso faz parte dos tempos em que vivemos, tempos de hiperconsumo, “uma sociedade liberal, caracterizada pelo movimento, pela fluidez, pela flexibilidade; indiferente como nunca antes se foi aos princípios estruturantes da modernidade” (p.26), como tão bem definiuo filósofo francês Gilles Lipovetsky como hipermodernidade.

No jogo entre o ato significativo de afirmar o mundo, que as pessoas produzem e em que se socializam, e a massificação do consumismo, a hipermodernidade dispensou a cultura e com ela a noção do coletivo na vida comunitária. Resta, por conseguinte, a alternativa de oferecer à infância o direito de uso espontâneo dos espaços públicos e de gozo de uma comunicação pública mais movida pelos encantos do que pelos desencantos.

Da mesma maneira que o costume de se restringir ao conforto das comunicações digitais e em rede não caracteriza cultura, o senso comum do consumo destituído de senso de responsabilidade também não pode ser qualificado como anseio público. Existe uma antinomia nessa lógica, um choque de verdades entre o consumismo e o consumo necessário, e, a fim de que a criança tenha a chance de se inclinar a um comportamento menos consumista,

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esse jogo “só pode ser ganho a partir da própria mudança estrutural da esfera pública e a partir da dimensão do seu desenvolvimento”, como propugna Habermas (p. 283).

A ambivalência semântica do que é comum, presente intensamente na vulnerável definição entre o que é público e o que é privado, o bem comum e o interesse particular e coletivo, cerca o indivíduo de espelhos, pressiona-o a ver na sociedade uma ameaça, uma razão desinteressante, sobrando-lhe um traiçoeiro ideal de felicidade projetado no objeto, e a coisificação da alma, como bens a serem perseguidos, por isso mesmo, geradores de frustrações e reforço do individualismo e do espírito competitivo inconsequente e generalizado.

O condicionamento da convicção íntima do ser social aos padrões do discurso dominante imobiliza a cultura. O discurso sedutor das peças publicitárias e da propaganda representa a intenção legítima das empresas no exercício da competitividade, porém quando essa fala é voltada para meninas e meninos, acaba gerando descompassos de identificação projetiva, em decorrência da sua dinâmica de neutralização do indivíduo, por meio da insistência de que a satisfação do desejo pode ser alcançada na compra do objeto.

Combatendo os efeitos e não as causas

O que se chama de comportamento coletivo é o comportamento de indivíduos, pois é o indivíduo que revela as motivações de uma cultura. Na realidade, diz a antropóloga estadunidense Ruth Benedict, “a sociedade e o indivíduo não são antagonistas. A cultura fornece a matéria-prima com a qual o indivíduo faz a sua vida. Se ela é escassa, o indivíduo fica em desvantagem; se ela é rica, o indivíduo tem a possibilidade de se mostrar à altura de sua oportunidade” (p. 171).

Sem uma estratégia social de fortalecimento da cultura tendemos a seguir produzindo leis e mais leis regulatórias de coisas tão aparentemente simples como não fazer publicidade e propaganda dirigida à criança. Esse esforço legítimo e legal para proteger a infância só tem sido necessário porque a vida cultural está dominada pelos propagadores da ideologia do consumismo.

Benedict afirma com consistência de voz que “a lei não é equivalente à ordem social (…) a lei nunca é nada além de uma rústica ferramenta da sociedade,

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uma ferramenta cujo avanço presunçoso precisa ser refreado com muita frequência” (p. 172). Em resumo, o que a antropóloga norte-americana quer dizer é que a ordem social está mesmo é na cultura, como operadora do que Brandão chama de “passagem de um mundo dado ao homem para um mundo construído pelo homem” (p. 39).

A crise do consumismo, que tem produzido obesidade em massa, sexualidade precoce, poluição desmedida e esgotamento dos recursos naturais renováveis do planeta, dentre outros efeitos nefastos à vida social e ao meio ambiente, desnorteia adultos e crianças em suas experiências presentes e expectativas de destino. O neurobiólogo chileno Humberto Maturana adverte que “não se ensina às crianças o espaço psíquico de sua cultura – elas se formam nesse espaço” (p. 23). Ou seja, o fundamento da mudança cultural necessária está no modo como vivemos com as nossas crianças.

A saída para essa alternativa de consumo não teria a intenção concentradora de riqueza e de renda que, por sua vez, tenta convencer a sociedade da sua intenção benéfica. Para o esteta gaúcho Flávio R. Kothe, isso acontece porque a vontade é contraditória: “Por um lado, ela quer considerar verdadeiro o que for adequado às suas conveniências; por outro, ela não quer ser enganada pela mentira dos outros e percebe que pode ser perigosa para si própria, a mentira que ela prega” (p. 11). O descompasso dessa retórica causa incômodos de inutilidade que podem levar a uma estética da ansiedade.

Os defensores da publicidade dirigida à criança alegam que meninas e meninos precisam da informação sobre o que vão consumir para suas brincadeiras. “Alguém acreditar em algo não é prova de que o conteúdo lógico de sua crença seja verdadeiro (…). Nas evidências se acredita conforme as conveniências”, afirma Kothe (p. 29). É importante ressaltar que quando se comenta que algo é ideológico se está normalmente identificando a consciência postiça de alguma coisa.

Brandão chama de “falsa cultura” os serviços e produtos destituídos do seu caráter original universalizante e Maturana afirma que o segredo das mudanças culturais está na configuração do atuar e do emocionar das redes de conversações formadas pelos membros de um determinado grupo social. Por ter essa mesma compreensão e por considerar que o natural na história das culturas está na diversidade, é que sustento a proposição de que todo processo de homogeneização é anticultural.

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As crianças brasileiras precisam usufruir da riqueza das estruturas socioantropológicas heterogêneas do país. No jeito de ver de Maturana, “a existência humana acontece no espaço relacional do conversar (…) no modo como nos relacionamos uns com os outros e com o mundo que configuramos” (p. 9). Somos historicamente uma sociedade aberta que gosta de assimilar o bom do estrangeiro, uma gente nascida de um processo profundo de miscigenação e de sua fermentação étnica em território continental, e pouco se usufrui da integração das complementaridades, das inter-relações e da encantadora atração das diferenças.

Crítico da estética sem expressão do belo e da pouca consideração dada à experiência sensível na educação, Velázquez procura separar bem os conceitos de educar e de formar: “Educar é propiciar oportunidades para que cada indivíduo possa experimentar-se em correlação com o meio (…). Formar é impor uma forma. É predeterminar as respostas que um indivíduo deve oferecer perante um certo número de situações” (p. 242). Penso também que a intensificação da estética na educação jogaria mais luz sobre o cotidiano, tornando-o mais apreciável e mais aceitável no meio estudantil.

O que acontece no Brasil com relação ao desencontro entre a nossa riqueza cultural subpercebida e a pobreza exuberante da falta de acesso às ofertas culturais é bem o que Benedict coloca como comportamento mal influenciado por um padrão cultural desvirtuado da sua grandeza. “É sempre possível que a descrição da cultura esteja desorientada, e não a cultura propriamente dita” (p. 156). Faz-se imprescindível, nesse sentido, chegarmos mais próximo do nosso padrão cultural profundo, a fim de termos vontade sincera de mudar o comportamento forjado pela modelagem consumista.

No artigo “Hiper-realidade e desaparição” (Diário do Nordeste, 15/03/2007), que escrevi motivado pela morte do sociólogo e filósofo francês Jean Baudrillard (1929 – 2007), pus-me a refletir sobre a instabilidade de conceitos que marcam o fenômeno da mutação dos significados na contemporaneidade. Identifiquei saltos de transição que me ajudaram a chegar a uma noção da desaparição que produziu o sistema de crenças trabalhado como plataforma para o lançamento da ideologia do consumismo como efeito da hiper-realidade, enquanto superposição forçada da imagem do real sobre a própria realidade.

O primeiro salto que percebi apresenta-se no início do século XX, quando ainda predominava o senso proverbial de que “o trabalho dignifica o homem”.

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A realização humana, motivada por essa moral, se daria invariavelmente pelo trabalho, resultando em mais produção do que capacidade de consumo. Este fato levou as forças do mercado a investirem na substituição da lógica hiperbólica do trabalho pelos argumentos do consumo, que predominaram por toda a segunda metade do século XX. Criar demanda por meio de imagens que descrevem ausências simuladas passou a ser a chave da ordem do segundo salto, que procurei formular como “o consumo dignifica o homem”.

O consumismo, inspirado nessa máxima de que “o consumo dignifica o homem”, perturba o entendimento da vida em sociedade ao vincular poder de compra com ascensão social e tratar a infância como nicho de mercado. Existem os publicitários que tenho chamado de pedófilos, aqueles que sentem prazer mórbido na perversão de crianças. Como executores de uma espécie de crime doloso contra a infância, esses tarefeiros incautos induzem crianças à exaustão da capacidade de desejar o insaciável, tirando delas a liberdade, a solidariedade, a criatividade e a felicidade, pela massificação de quereres. Sem contar com o estímulo à desconsideração da autoridade dos pais, de educadores e cuidadores e à promoção maliciosa da esperteza.

As empresas destituídas de consciência da sua função como equipamento da sociedade, lato sensu, invadem o universo infantil com a publicidade e a propaganda, chegando inescrupulosamente até os espaços escolares em sua fúria de domínio dos desejos e quereres das crianças. Desconsideram a compreensão de que o papel da escola não é formar consumidores e que cada produto infantil que circula no ambiente escolar faz as vezes de franquia cultural indevida, marcada por uma conduta deliberadamente intrusiva.

A pesquisadora paulista Mônica Yoshizato Bierwagen estudou aspectos da reação de parte da sociedade que resolveu optar por um modo de consumir que atenta para as repercussões sociais e ambientais. São pessoas que substituem produtos industrializados por orgânicos, que separam o lixo a fim de facilitar a reciclagem, que procuram reduzir o consumo de energia, de alimentos e de água, reutilizando o que é possível, enfim, cidadãs e cidadãos que não se sentem apenas consumidores, mas, sobretudo, indivíduos comprometidos com o bem-estar da coletividade e com a preservação do meio ambiente.

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A conclusão de Bierwagen é de que, na prática, os conceitos de “consumo consciente” e de “consumo sustentável” estão normalmente voltados apenas para o enfrentamento dos efeitos e não das causas dos padrões insustentáveis característicos do consumismo. Segundo ela, o consumo visto simplesmente como troca econômica dentro de um cenário de mercado não é capaz de questionar o aspecto crucial da necessária mudança nos parâmetros consumistas, no que tange à construção de outra ordem sociopolítica-econômica, na qual hábitos e estilos de vida estejam adequados à prática do respeito ao bem comum e aos cuidados com a natureza.

Bierwagen questiona se é possível considerar como uma “nova consciência” a evocação dessa atitude racional utilitarista baseada na teoria das escolhas. “Essa concepção, que tem fortes laços com a concepção econômica do consumidor, não se preocupa em compreender as razões que o levam a consumir” (p. 60). Mesmo que a sociedade procure se deslocar da condição de consumidora passiva para levar em conta as consequências do que consome, essa transição é difícil por estar imbricada na nossa representação cultural vigente e, como tal, constitui-se, como declara Maturana, de “um sistema conservador fechado, que gera seus membros à medida que eles a realizam por meio de sua participação nas conversações que a constituem e definem” (p. 33).

Mal de escala

A antropologia mostra que o ser humano primitivo, por estar mais centrado na sobrevivência, não via a humanidade ao olhar para o mundo. Na hipermodernidade, os avanços engendrados pela causa comum ao longo da história perderam força com a horizontalidade cultural e os padrões primitivos voltaram a ter realce social, como esclarece Benedict: “É velha a distinção entre o grupo local e o grupo de fora, e se nós continuamos com a tradição primitiva nesta questão, temos para isso bem menos justificação que as tribos selvagens” (p. 19). A pensadora estadunidense argumenta que esse nivelamento por baixo nos impede de tirar melhor proveito e contentamento das diferenças culturais entre os povos.

Ainda que o tema do consumismo ocupe lugar de destaque nas práticas sociais contemporâneas, Bierwagen chama a atenção para o fato de

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o discurso politicamente correto do consumo estar circunscrito às ideias da soberania do consumidor e da liberdade de escolha. Em sua análise, ela assevera que se trata de uma estratégia problemática, fundamentalmente porque, ao adotar um conceito estrito de consumo, a mania de comprar “obnubila outras possibilidades de satisfação material dos desejos e necessidades humanos que não sob a forma de trocas econômicas, assim como desconsidera diferentes formas de participação dos cidadãos na construção de uma sociedade sustentável” (p. 107).

No campo da educação ambiental, as crianças que têm vivências na relação com a natureza tornam-se muito mais aptas a saberem se defender da insistência inoportuna dos agentes promotores do consumismo. No meu livro Eu era assim, procuro advertir que “na educação, precisamos distinguir que uma coisa é ver algo e outra é ter uma visão de algo” (p. 123), para podermos dar a oportunidade a meninas e meninos de criarem as suas próprias inferências de sustentabilidade. Maturana reforça a minha convicção ao acrescentar que “os recursos naturais só existem à medida que desejamos o que chamamos de recursos naturais. O mesmo acontece com as ideias, os valores, os símbolos, vistos como elementos que orientam a nossa vida, mas que só o são até o ponto em que aceitamos o que eles conotam e representam” (p. 11).

Não há mais espaço para o ser humano manter sua excepcionalidade no mundo animal. Para a criança do consumismo, sem experiência cultural, “o homem costuma acreditar que todas as coisas existem para que ele possa dispor delas. Não é lógico, porém, supor que tudo exista para os usos e abusos de uma espécie animal”, reflete Kothe (p. 332). Na condição de seres “aprendentes”, como define Brandão, temos todas as qualidades para encontrar soluções que sigam viabilizando a experiência humana. “Tal como outros seres vivos com quem compartilhamos a mesma casa, o planeta Terra, fomos criados com as mesmas partículas ínfimas e com as mesmas combinações de matérias e de energia que movem a vida e os astros do Universo. Algo do que há nas estrelas pulsa também em nós” (p. 17).

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Parafraseando o educador carioca, eu diria que um aprendizado para escapar do consumismo teria de ter em boa conta que, mesmo pensando como sujeito da cultura, precisamos nos sentir como seres da natureza.

Mensagens como essa me parecem essenciais para as crianças sentirem que tanto a cultura quanto a natureza são exteriores a nós. Precisam ter a chance de observar como os bichos adaptam seus sistemas de vida ao ambiente onde vivem, enquanto vivem. Lanço mão novamente do pensamento de Brandão para dizer que “sendo, como todos os seres vivos, sujeitos da natureza, acabamos nos tornando uma forma da natureza que se transforma ao aprender a viver” (p. 21). E complemento com a ilustração de Benedict: “À diferença do urso, o animal humano não desenvolve cobertura polar para adaptar-se ao Ártico depois de muitas gerações. Ele aprende a costurar um casaco e construir uma casa de neve” (p. 21). Aprendi com Brandão que para terem o entendimento dessa dinâmica, meninas e meninos necessitam perceber que o “mundo da natureza” nos antecede, enquanto o “mundo da cultura” necessita de nós para ser criado.

No artigo “O sentido do progresso” (O Povo, Caderno Vida & Arte, 21/08/2013), trato de como chegamos a um padrão de consumo que nos faz devorar mais do que as condições de reposição da natureza. Reflito sobre o congestionamento de diagnósticos e preceitos em favor do progresso que dificulta o rompimento com esse padrão que vem de longe. Cito o estudo do arqueólogo e escritor anglo-canadense Ronald Wright, que enfoca vários exemplos de culturas que se destruíram pela busca de um progresso sem limites, desde o tempo em que a humanidade descobriu que o porrete era mais eficaz do que o punho e passou a medir seus avanços pela tecnologia.

O dilema enfrentado pelos povos que foram vítimas do seu próprio sucesso, em diferentes graus de falsa esperteza, ignorância e ambição, vem de uma deturpação da ideia de progresso, que Wright chama de “mal de escala” (p. 20). Ele cita os caçadores paleolíticos que progrediram quando aprenderam a matar mamutes com lanças. Depois, perceberam que poderiam conduzir rebanhos inteiros a precipícios, matando-os em quantidade, e passaram a viver um período de esplendor até acabarem com a fonte de caça e morrerem de fome.

Com o surgimento da ciência moderna e da indústria, há poucos séculos, a noção de progresso ganhou relevância e consolidação como ideal

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de desenvolvimento. Levar vantagem sobre a natureza foi um avanço tão encantador para a evolução econômica que boa parte do mundo perdeu o equilíbrio entre a necessidade e a cobiça. Em sua obra, Wright mostra como a aceleração do crescimento deixou na paisagem do planeta monumentos que simbolizam as armadilhas das conquistas e dos fracassos das civilizações.

Ele trabalha com referências de sociedades que ultrapassaram os limites naturais e colapsaram, como os sumérios, inventores da tecnologia de irrigação, mas que não conseguiram prever as consequências da catastrófica salinização que essa invenção provocou em suas terras. Fala de como maias e romanos direcionaram suas cargas ambientais para territórios conquistados e, apesar do esgotamento imperial, deixaram remanescentes diretos que são parte da atualidade.

O olhar de Wright estende-se ainda pelo Egito e China, culturas resistentes, mesmo com históricos de abuso da natureza. Em termos de potencial de devastação total do planeta, ele cita a indústria armamentista como a primeira a ter essa força, atribuindo ainda o mesmo poder destrutivo ao que chama de “hemorragia do lixo” (p. 149) e à explosão demográfica. A insustentabilidade começou com a mudança do sentido de suprir necessidades para o de criar necessidades de consumo excessivo.

Das referências apontadas por Wright, a mais chocante é o conjunto de centenas de desoladas e colossais esculturas de pedra (moais) que restaram da cosmovisão dos habitantes da Ilha de Páscoa. O autor faz isso longe das atribuições das maravilhas do mundo a atlantes, deuses ou viajantes do espaço, por considerar que a mistificação rouba de nossos ancestrais os seus méritos e de nós a experiência deles. “Nenhum desastre natural transformou isso: nenhuma erupção, nenhuma seca ou doença” (p. 75). Tudo foi feito por pessoas trabalhadoras, produtivas, mas que resolveram pedir proteção “extática” para progredir.

O autor explica que o culto às estátuas tornou-se cada vez mais competitivo e extravagante, o que foi exigindo o corte de mais e mais árvores para a montagem de altares, num círculo vicioso de anseio por abundância, que só foi parar quando restaram apenas as esculturas gigantes, que “comeram” o verde, o solo e a água. Foi então que a crença compulsiva se transformou em desencanto também compulsivo e, desesperados, os habitantes da ilha derrubaram seus monumentos e desapareceram.

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Competências estéticas

A desconstrução do consumismo não se dará por uma transmissão racionalizada, reduzida ao ensino, às leis e às campanhas educativas. Por acontecer no âmbito da cultura, essa possibilidade carece, antes de tudo, de experienciação e, nas palavras de Velázquez, “um indivíduo só pode experienciar por via de seus próprios sentidos” (p. 227). Não se trata, portanto, de transmitir, mas de criar ambiências de oportunidades culturais onde a criança possa procurar sentido à sua existência, com liberdade de reformular-se adaptativamente.

O paradigma civilizacional capaz de desconstruir a sanha perdulária da ideologia do consumismo requer uma cultura colaborativa ancestral, um senso de vida comunitária e, como afirma Maturana, “uma cultura matrística, na qual homens e mulheres podem participar de um modo de vida centrado na cooperação não-hierárquica” (p. 25). A desconstrução do atual sistema de exageros se daria pela instituição de novos significados decorrentes da reconfiguração da vida comunitária física e virtual. Benedict faz notar que “em todos os estudos de costume social, o cerne da questão é que o comportamento em consideração deve passar pelo buraco da agulha da aceitação social” (p. 158).

Aderir a uma mudança de paradigma nos modos de consumir e de projetar um sentido de destino, seguindo na contramão do arsenal midiático onipresente no cotidiano, a oferecer facilidades de diversão e de relacionamento virtual, carece do que Velázquez chama de “competências estéticas” nas práticas educativas. “A sociabilidade, isto é, o sentimento de pertença a uma coletividade, depende portanto do embate irracional do sujeito com o meio” (p. 252). O jogo perceptivo das pessoas nas comunidades virtuais tem grande valor, porém, não deixa de prescindir do mundo social físico. Crescer dentro da rede, mesmo nas experiências de simulação do real, não cultiva alimentos nem nos permite usufruir do sentir do calor tátil do outro.

Os esforços de cidadania direcionados à valorização da participação da criança na vida cultural encontram barreiras no fato de que a “esfera pública segue em mão contrária à urgência de politização das grandes questões sociais”, segundo Bierwagen (p. 79). Citando a filósofa paulista Marilena Chauí, Bierwagen ressalta que “o princípio fundamental da ideologia é ocultar partes da realidade que podem ameaçar a história imaginária que constrói” (p. 79). Logo, é no tergiversar do aparente que ela nutre o sentimento anticultural em adultos e crianças.

Tomando como referência o pensamento de Habermas em que ele confronta dois setores de comunicação politicamente relevantes – o

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sistema de opiniões informais, pessoais, não públicas e as opiniões formais, institucionalmente autorizadas –, convém observar que “as opiniões informais diferenciam-se segundo o seu grau de obrigatoriedade: no nível mais baixo desse setor de comunicação, passam a ser verbalizadas as questões culturais que parecem óbvias e indiscutíveis, os resultados, bastante difíceis, do processo de aculturação, normalmente excluído da própria reflexão” (p. 284).

Depois, seguindo a escala proposta pelo pensador germânico, é que vem a própria história pessoal e somente no terceiro nível se encontram as obviedades da indústria cultural e seu bombardeio publicitário, induzindo gostos e preferências, apoiados na natureza coercitiva das opiniões grupais. A priorização da fofoca, do boato e das notícias que banalizam o viver, como matéria-prima para refabricação de produtos da ideologia do consumismo, é a tônica de validação do circuito de opiniões midiáticas, mesmo quando aparentam criticá-lo. Ao instigar a precocidade na criança, o mercado naturaliza sua adultização, de forma a tê-la, a possuí-la, como número no seu cadastro de consumidores fidelizados.

A distinção de seres “aprendentes” torna-se comprometida à medida que as crianças são seduzidas ao conforto alienante do sofá, das áreas confinantes e da negação da rua, ficando diante disto sem a oportunidade de viverem o seu tempo, imaginando cenários e situações articuladas pela noção do belo. Para esquivar-se desse ataque nocivo, advoga Velázquez que a sociedade precisa dar à arte a importância que ela merece, considerando “o equilíbrio de sua organicidade interna e ambiental” (p. 245). O acesso aos fatos culturais estéticos, artísticos e não artísticos possibilita à meninada se conduzir rumo ao meio que for, pelo viés orgânico da construção relacional.

No seu esforço em favor do renascer do propósito da estética, em um tempo no qual a produção e reformulação de sentido passou a depender “de promessas publicitárias de felicidade pasteurizada e embalada a vácuo” (p. 25), Velázquez faz um contraponto ao “impulso marqueteiro que levará ao consumo irrefletido” (p. 26), abordando a estética como elemento-chave do processo educativo que tem na cultura seu impulso transformador. Recorrendo ao pensador frankfurtiano Herbert Marcuse (1898 – 1979), ele afirma que a idealização burguesa da cultura propugna a vida feliz como algo fora do cotidiano, e cita o pensador francês Jean Baudrillard (1929 – 2007) para dizer que a sociedade do consumo aspira a uma suposta tranquilidade que só se realizaria distante do real.

A experiência sensível é indispensável à criança para que ela possa escapar das armadilhas da supremacia da força sobre a inteligência e da competição sobre a cooperação. O consumismo é fruto da cultura patriarcal e sua ânsia de controle do mundo natural e social, “como se todos os nossos atos requeressem o uso da força, e como se cada ocasião para agir fosse um desafio” (p. 37), no dizer de Maturana, o que justificaria posturas como a opção pela guerra, a competição sem limites e a dominação de outros povos, como se a coexistência ordenada requeresse primordialmente a subordinação do outro.

Essa forma patriarcal de agir, presente no comportamento de muitos povos, está, por exemplo, na base das narrativas dos videogames e de todo o pano de fundo do poder de aquisição como elemento distintivo de ascensão social pelo consumo. Isso vai desde a mais simples cópia de uma etiqueta de moda até o paredão de som dos reboques e malas de automóveis que exibem a potência de alguém que quer demonstrar que pode invadir o espaço público com a música do seu interesse.

Maturana propõe a alternativa da cultura matrística, na qual predomina o feminino, e não matriarcal, evitando que a autoridade continue sendo uma questão de gênero. A experiência da cultura matrística seria, de acordo com estudos de arqueologia e antropologia, pré-patriarcal, onde as diferenças eram consideradas, mas não tornavam alguém melhor que outro, onde o cotidiano estaria centrado na estética sensual das tarefas diárias como atividades sagradas, sem a predominância da urgência como expressão definidora dos modos de vida.

Com o título “Biologia do amar e do brincar” (Diário do Nordeste, 28/02/2013), escrevi um artigo no qual me refiro ao amor como emoção, e à brincadeira como prática não reflexiva do exercício de ser, na configuração de modos de vida e de relação que constituem o outro, enquanto igual na sua diferença. Maturana é de opinião que, por decorrer de redes de conversações apoiadas na trajetória do emocionar, a vida humana ganha sentido e o ser social integral se forma quando infundido na aceitação e na confiança que a biologia do amar e do brincar são capazes de proporcionar.

É no espaço relacional do conversar que configuramos o mundo enquanto vivemos. A humanidade nasceu a partir do momento em que descobriu a emoção do amor e da estética. No recorte de Maturana, a cultura ancestral que ele chama de matrística foi destruída por povos pastores patriarcais, mudando o emocional e, consequentemente, a rede de conversações. Na cultura matrística, “o pensamento humano talvez tenha sido naturalmente sistêmico, lidando com um mundo em que nada existia em si ou por si mesmo, no qual tudo era o que era em suas conexões com tudo mais” (p. 46).

Nessa cultura matrística pré-patriarcal, a agressão e a competição não eram fatores definidores da maneira de as pessoas viverem, nem havia divisão de propriedade nos campos de cultivo e coleta. A título de ilustrar seu modo de pensar, Maturana mexe no nosso baú de arquétipos e puxa a figura do lobo, como símbolo do inimigo nas conversações da humanidade. Diz que o lobo representa um ponto de alteração no emocionar indo-europeu (do qual descendemos em parte) quando teve restringido seu acesso às manadas das quais compartilhava o alimento com os povos pré-patriarcais.

A partir do momento em que as relações com a vida se deslocaram da confiança no equilíbrio natural para a busca ansiosa de segurança, o lobo tornou-se uma companhia indesejável, portanto, merecedor de eliminação. Vidas passaram a ser suprimidas em nome da conservação da propriedade. Maturana explica que o caçador que tira a vida de um animal que irá comer fica agradecido, ao passo que o pastor fica orgulhoso ao tirar a vida de um animal, simplesmente porque sua existência significa uma ameaça à ordem artificial estabelecida (p. 55).

A principal característica da cultura matrística, de acordo com Maturana, é a harmonia da coexistência cíclica do nascimento e da morte, numa compreensão de que todos os seres vivos e não vivos pertencem ao mesmo reino de existências conectadas (p. 64). Na cultura patriarcal, a oscilação entre o belo e o perigoso, o fascinante e o aterrorizador define o pertencimento ao cosmo e o sentimento de uma infinita pequenez humana, levando as pessoas a se submeterem ao poder dessa totalidade, como se submetem à autoridade do patriarca (p. 66).

A mudança fundamental no emocionar dessas duas situações é o surgimento da inimizade e a transformação dos instrumentos de caça em armas. A maneira como se vive com as crianças a cada tempo é a fonte e o fundamento de cada conservação ou inflexão cultural. A alteração na rede de conversações, da cultura matrística para a cultura patriarcal, teria sido, então, incorporada pelas crianças, conservando-se geração após geração até os dias atuais.

Mundo do avesso

Sair do domínio do consumismo pela cultura passa por uma consciência de que há melhores estilos de vida do que esse que tem colocado a experiência humana na perspectiva da autodesaparição. Nesse sentido, um jeito de interagir com nossos filhos e filhas é, por exemplo, brincando do “mundo do avesso”, como na cantiga “El reino del revés” (“O Reino do Avesso”) da compositora argentina María Elena Walsh (1930 – 2011), na qual, sem didatismos, a autora mexe com padrões de desejos, preferências, aspirações, intenções e escolhas.

Ao cantar essa música, Walsh instigava as crianças a se divertirem pensando fora da caixa. Em uma estrofe desse clássico infantil ela canta: “Me disseram que no Reino do Avesso / Ninguém dança com os pés / Que um ladrão é juiz e o outro policial / E que dois mais dois são três”. Em outra estrofe, segue provocando a imaginação: “Me disseram que no Reino do Avesso / Cabe um urso em uma noz / Que os bebês têm barba e bigode / E que um ano dura um mês”. Nessa pegada, a saudosa cantora seguia oferecendo combustível para meninas e meninos descobrirem o que pode ser virado e revirado ao seu redor.

Este é um exemplo de como a arte pode, sem perder sua liberdade de conteúdo e de forma, reforçar mudança de percepções pelo viés da cultura. E, como assegura Maturana, se “uma pessoa se reconhece como parte intrínseca do mundo em que vive” (p. 47), resta a meninas e meninos se revoltarem, ficarem apáticos e até adoecerem, como reação e demonstração da dor que é viver em uma sociedade na qual a cultura foi fraudada para dar lugar ao enganoso ciclo vicioso de estímulo e reação do behaviorismo consumista.

Não há como tirar a infância do consumismo sem ser lado a lado com a criança; sem levar em conta o estado da infância, enquanto fenômeno psicossociológico em suas territorialidades, institucionalidades e linguagem do brincar. Para a pesquisadora francesa Marie-José Chombart de Lauwe, “a personagem da criança tem uma situação ambígua em sua alteridade com o adulto. É comum aos adultos reconhecerem nas crianças uma antiga forma do seu eu, da qual frequentemente se sente saudoso” (p. 2). Ao se projetar no seu passado infantil, o adulto tende a sentir vontade de escapar dos padrões sociais e voltar ao tempo em que as possibilidades estavam abertas, para compensar o que lhe faltou, criando muitas vezes expectativas irrealistas.

Fazer com as crianças exercícios de cultura matrística pode ser um caminho anticonsumismo na coexistência social e cultural. Algo como o desenvolvimento da noção de que o caráter cíclico da existência engloba “tudo o que está vivo e não vivo no fluxo de nascimento e morte” (p. 67), em consonância com a percepção de Maturana. Esse tipo de olhar convida à participação, à colaboração, à confiança e à aceitação mútua, na expansão da vida como processo não linear da narrativa do viver, como uma experiência mais curiosa e mais cheia de possibilidades do que um jogo eletrônico. “A única saída para essa situação é a recuperação da nossa consciência de responsabilidade individual por nossos atos, ao percebermos de novo que o mundo em que vivemos é configurado por nosso fazer” (p. 114). Afinal, a hipermodernidade, de Gilles Lipovetsky, é uma consequência do hiperpatriarcado de Humberto Maturana.

Diante de um deteriorado quadro social, onde quem não consome é encarado como intruso, é muito desvantajosa a condição da criança como ocupante quase ilegal de um espaço social marcado por estereótipos, estigmas e preconceitos. O consumismo é um estado de vazio e tédio social, decorrente da sensação de inutilidade decorrente da indução programada de um sistema estruturado para se beneficiar da venda do desnecessário.

O mundo social físico e o mundo social virtual são meios, ambientes comunitários com vias e infovias, dinâmicas de comunicação, espaços com características peculiares, mas não devem ser separados um do outro como culturas distintas. Em qualquer deles que a criança circule, ela pode ser o que é, nas suas diferenças e semelhanças. “O pensamento social não tem tarefa mais importante do que considerar adequadamente a relatividade cultural” (p. 187), nas palavras de Benedict. Por isso, o lugar da criança no mundo consumista não existe, é fora dele, brincando, estudando e consumindo apenas o necessário, inclusive o supérfluo moderado.

Nas rotinas urbanas chegamos à apartação de dois tipos de crianças: as com rua e as sem rua. As com rua aprendem a ler a realidade concreta na luta pela sobrevivência e picham literalmente o espaço público na busca de dizer que não sabem dizer o que sentem; já e os sem rua vivem trancados, sem muitas vezes saber o que temer, porém, com tendências a desprezar o bem comum. Ambas são niveladas pelo acesso contumaz às telas dos computadores, celulares, televisões e tablets, seja em home theaters ou em lan houses.

Tamanho da criança

No debate sobre problemas urbanos fala-se em mobilidade, paisagismo e acessibilidade, mas nas nossas cidades falta requalificação cultural que trate da coesão entre lugares e sentidos. A palavra “sociedade” precisa deixar de significar apenas a noção de “mundo das crianças” colocado como algo exótico no “mundo dos adultos”. Nas cidades, dificilmente se encontram obras públicas em escala infantil. As crianças têm sempre que olhar para cima se quiserem ver um letreiro qualquer. É impraticável para a criançada circular pelas áreas públicas com pertença, no vivenciar das fases do desenvolvimento infantil, por mera falta de estrutura de reconhecimento cultural.

Óbvio que a cultura isoladamente não assegura a vida em sociedade. Mesmo sendo mais importante do que a educação, aquela necessita desta para transformar em interpretação a predominância dos costumes na experiência, na crença, na modelagem do comportamento. A educação sem cultura tende à alienação e à perda de sensibilidade. Na realidade multimodelar em que vivemos, os elos unificantes não podem prescindir dos impulsos e das feições culturais para abrir horizontes.

Tenho pensado muito no espectro de fatores constitutivos do real. No artigo “Ser pessoa – A experiência da infância”, publicado na RIvista do MINO nº 151, Editora Riso (p. 20, out/2014), foquei minha reflexão no brincar enquanto verbo, e na brincadeira como seu substantivo. Sem brincar o indivíduo pode crescer como ser humano, mas somente brincando torna-se pessoa de fato. Ser humano é espécie; ser pessoa é cultura. É pelo brincar que a criança se revela gente de maneira plena. Na circunstância que for, através da brincadeira, ela inventa a oportunidade de existir.

Brincadeira é imagem em movimento; brincar, imaginação “concreta”. Pelo brincar e pela brincadeira as crianças de qualquer lugar do mundo estabelecem identificações umas com as outras, inclusive com a fauna e a flora. Sentem-se parte da cultura e da natureza. Comunicam-se por animismo e por trocas de gestos, olhares e performances lúdicas.

Os bichos pequenininhos falam sem precisar das nossas palavras, porque sabem a língua do brincar, além de demonstrarem sentimentos e de terem habilidades sociais. A criança brinca com o animal de estimação como brinca com um brinquedo. Nesse processo de descoberta, ao relacionar-se com uma boneca acha que ela sente fome; quando tenta “desmontar” um bichinho de estimação às vezes nem percebe que ele sente dor.

A narrativa do brincar está associada ao universo de vivências da criança, à literatura a que tem acesso, à música que escuta, aos lugares por onde anda, ao que vê, ao que toca, ao que cheira e ao que saboreia. No que fala sozinha, ela conta a história das significações intelectuais, das interpretações emocionais e das sensações cotidianamente processadas na intimidade dos seus pensamentos e sentimentos.

A existência de uma infância livre do consumismo passa pela racionalidade, mas passa também pelos significados abstratos, pelas sugestões mágicas, pelo pensamento sagrado e pelo código de sobrevivência do instinto. Passa por uma relação profunda e sistêmica com a ideia de nascimento e morte, pela sensação de processo e meio circulante. A plenitude está na insuficiência do indivíduo, que se realiza na complementaridade com o exterior, o que leva a criança o assenhorar-se das experiências alheias que podem se tornar suas também.

Na fuga das limitações do instinto, a humanidade conseguiu poder sobre os objetos. Fischer lembra que “uma pedra que anteriormente não era útil adquiria utilidade e era recrutada para o serviço do homem ao se transformar em instrumento” (p. 37). Eis uma chave da válvula de escape do consumismo: começar a fazer atividades com a criança, de forma que ela tenha em mente que os objetos são dela e não ela dos objetos. Se essa descoberta virar brincadeira, está destrancada a possibilidade de conexão de fuga da criança para o mundo circundante. Para isso, ela necessita, todavia, de um mundo ao seu redor, um mundo fora da ordem configurada pelo consumismo; seu lugar na cultura, onde possa projetar novos sistemas de identificação, de representação, novas aspirações.

No mundo do consumismo, da massificação, o indivíduo se esforça para se matricular nos padrões estabelecidos e isso agride os seus desejos e necessidades mais autênticos; pois no fundo ninguém merece ser representado na homogeneidade. É dramático no comportamento atual, termos, de um lado, equipamentos com grande potencial de conectividade, e, de outro, indivíduos abestalhados, ocos, abduzidos de vontade própria, embora capazes de mexer com destreza em sofisticados aparelhos e equipamentos.

O consumismo é uma ideologia que se apresenta como categorizadora social entre os que têm e os que não têm poder aquisitivo, os que podem esbanjar e os que necessitam de sobras para sobreviver. Se quisermos verdadeiramente crianças livres desse sistema de crenças, teremos de contribuir para que escapem das identificações exclusivas com a técnica e devolvê-las à vida comunitária, ao mundo da cultura. Não adianta tanto lutar contra o consumismo sem ampliar as ofertas culturais. A criança presa ao consumismo, a criança de vida opaca, sem grandeza, sem um quê e um porquê, necessita assimilar as características do diferente que nem desconfia poder desejar.

É comparando estilos de vida que a criança encontra sua estabilidade individual, sua centralidade, seu equilíbrio como ser pessoa. Seja em que plataforma for, e a despeito das sombras dominantes dos blockbusters, as artes e a literatura ainda são excelentes plataformas motivadoras do ser pessoa: “Toda arte é condicionada pelo seu tempo e representa a humanidade em consonância com as ideias e aspirações, as necessidades e as esperanças de uma situação histórica particular”, na ótica de Fischer (p. 17), entretanto, ela permite um trânsito atemporal pelo querer criativo em busca de mudar sempre.

No consumismo, do ponto de vista do adulto, a criança ideal é aquela que para de chorar com a promessa de um presente; e, do ponto de vista do mercado, a que exerce influência sobre as compras feitas pelos adultos. Do ponto de vista da criança, talvez tudo o que ela queira seja se livrar da sensação de invasora do mundo adulto e ter um lugar onde possa desenvolver sua existência no tempo presente. Se construir hipóteses em cenas imaginativas já faz parte do processo de autodesenvolvimento infantil, ao se sentirem oprimidos pelas agendas quase executivas que lhes são impostas, meninas e meninos retiram-se mais comumente do cotidiano objetivo.

Chamado da aventura

Em sua pesquisa sobre esse assunto, feita na literatura, Chombart realça o quanto é comum aos autores expressar visões da criança em estado de devaneio, como se ela tivesse aptidão para evadir-se do cotidiano. No sentido de viver como quem faz uma ocupação no mundo adulto, a pesquisadora e ativista francesa reforça o meu pensamento quando frisa que em muitos casos essa evasão é sinal de que a criança percebe na rotina dos adultos um sentido inferior ao universo imaginário. “As crianças não se evadem apenas num outro mundo através de devaneios ou de certos jogos. Elas buscam o chamado da aventura para partir para a descoberta, ou fogem porque não podem mais suportar a vida cotidiana” (p. 118 e 119).

O que parece uma dificuldade da criança de separar o real do imaginário é, nesse aspecto, um extraordinário recurso de apreensão do mundo. A própria entrega de ânimo ao consumismo tem muito de efeito da falta de opções de aventuras e descobertas culturais. A realidade torna-se desinteressante e a criança tende muitas vezes a adoecer sentada diante dos monitores. Não obstante a inquestionável qualidade do conteúdo narrativo de alguns videogames, com seus recursos literários, cinematográficos e interativos, o código das palavras ainda é o mais extraordinário provocador do diálogo das referências que cada leitor tem dentro de si. “É ao mesmo tempo a efervescência da vida na criança, sua curiosidade, sua sede de descobrir, que a impulsionam a realmente partir para a aventura ou para o devaneio”, reflete Chombart (p. 123).

Sou defensor da sociabilidade integral, com crianças e adultos participando das vidas comunitárias. Entretanto, cuido de não esquecer que as crianças necessitam da convivência umas com as outras, sem a interferência do adulto. Chombart esclarece que “o tipo de grupo que as crianças formam, quando estão reunidas, completa simultaneamente as características da personagem e a imagem de ‘outro mundo’ que é suscetível de criar quando vive livremente com seus semelhantes” (p. 129). A relação criança-sociedade encontra no consumismo um falso ponto de equilíbrio. Comprar é o verbo de ligação dos aforismos modernos, tais como “consumo, logo existo” e, na ação de “fazer login”, de conectar-se, logar-se, a nova máxima: “logo, logo existo”. Assim, muitas relações entram em situações de oposição, alimentadas pelo contraste gerado entre o mercado e a cultura.

Nas cartas que escreveu para personalidades do século XVI ao XXI que são referências na educação brasileira, o professor português José Pacheco fala da importância da dinamização da memória, da superação do presentismo, da ânsia novidadeira e do modelo mental de colonizado, como premissas ao desenvolvimento cultural inspirado na vizinhança fraterna e no local como parte do todo, em cada espaço e tempo de aprendizagem. Para Pacheco, conhecido como o idealizador e coordenador da Escola da Ponte, instituição fundada em 1976, que ficou conhecida por seu projeto educativo baseado na autonomia dos estudantes, o tempo do aprender tem a mesma duração do tempo de viver.

Nos mundos sociais físico e virtual, o que está posto é noção de comunidade de aprendizagem, um grupo que, segundo Pacheco, “interage entre si e estabelece relações sociais, durante um determinado período, com o propósito de aprender um conceito de interesse comum” (p. 102). O educador português destaca na confusão corrente entre educar e escolarizar, esse conceito formulado na década de 1960 pelo educador cearense Lauro de Oliveira Lima (1921 – 2013), época em que crescia no Brasil a fantástica proposta das escolas da comunidade, desenvolvida por estudantes, em 1943, na cidade de Recife. Dirigindo-se ao professor Lauro, José Pacheco realça o papel da escola na relação com a comunidade: “Me disseste que a escola deve ensinar o povo a utilizar-se de instrumentos da cultura (…) para que não sejam quistos sociais, sem nenhuma relação real com o meio” (p. 102), de modo que o estudante se relacione antes de tudo com o seu próprio território de vivência.

Na perspectiva crítica do Hemisfério Sul, o tempo educacional, na opinião de Sodré, é o da descolonização, da reinvenção dos sistemas de ensino, com vistas à diversidade simbólica. Para ele, a educação não se confunde com a cultura, “tradicionalmente entendida como o modo de produção de sentido para a totalidade social” (p. 16). E completa: “Para o homem tradicional, ser não significa simplesmente viver, mas pertencer a uma totalidade, que é o grupo (…). O indivíduo pertence ao grupo tanto quanto a si próprio, pois ser um ou outro depende, na verdade, dos limites que se estabelecem para a identidade” (p. 17).

Sodré trabalha com a ideia de grupos naturais, a exemplo da família, e de grupos instituídos, como é o caso das comunidades políticas. Se o consumismo está instalado nesses grupos, a criança parte para o relacionamento social com suas representações culturais corrompidas, dificultando o pensamento crítico no processo educacional. Talvez isso corrobore para a vitalidade de um pensamento social que recuse qualquer perspectiva crítica, como se “aceitar o mundo fosse simplesmente olhá-lo e tomá-lo ao pé da letra” (p. 18), sob o aspecto de aceitação da realidade do vivido, desde que se aprenda a vê-la em suas formas de apresentação.

Nesse cenário de recusa da redução da realidade ao mero existente e como orientação social na perspectiva das oportunidades de transformação e passagem, Sodré sustenta que “descolonizar o processo educacional significa libertá-lo, ou emancipá-lo, do monismo ocidentalista que reduz todas as possibilidades de saber e de enunciação da verdade à dinâmica cultural de um centro” (p. 19). O consumismo seria, deste modo, um derivativo natural dos ideais capitalistas de saque, domínio e extermínio dos que não se rendem a sua planificação simbólica hegemônica.

Metacognição e recursividade

A cultura é um campo propício à fuga da monocultura da mente e seus inseticidas lógicos. Tivéssemos uma educação reflexiva, prazerosa e desvendadora, que implicasse no que Sodré chama de “qualificação existencial do pensamento frente à realidade” (p. 30), não estaríamos, via de regra, submetendo as crianças brasileiras aos caprichos de um mercado global da educação de racional conveniente à estimulação da competitividade exaustiva e à priorização dos processos cognitivos. É na cultura que a criança pode mais facilmente exercitar a metacognição, conceito com o qual os psicólogos e pedagogos tratam a faculdade do ser pessoa de refletir sobre si e sobre o outro no processo de aprendizagem.

Em seu estudo sobre as relações entre cognição, cultura e afeto, a psicóloga e pesquisadora paulista Maria Isabel da Silva Leme aborda a aprendizagem tanto do ponto de vista do ser humano, enquanto espécie, que, como tal, partilha processos com outros animais, como a associação e a recursividade; quanto do ser pessoa em si, como a abstração e a metacognição, no que diz respeito ao papel da cultura na formação dos processos mentais.

A operação mental da recursividade, que é a referência sobre referência, é fundamental na construção do pensamento abstrato. Ela nos permite, no jeito de ver de Leme, “criar representações de ordem superior e exercer algum controle sobre elas” (p. 711), como a de ter consciência do nosso próprio conhecimento, a capacidade de viajar no tempo, de produzir ferramentas que fazem ferramentas, de desenvolver narrativas e de pensar por similitude relacional entre o semelhante e o diferente, esta parte, exemplificada por Leme na figura de função análoga do ninho e da colmeia.

Citando o psicólogo polaco-estadunidense Jerome Bruner, Leme ressalta que ele “considera que a possibilidade de se tornar cultural é o que diferencia a cognição humana (…) pois conceitua cultura como um conhecimento do mundo, implícito e não interligado” (p. 712). É o que autoriza a redescrição representacional do jogo imaginativo, por meio do qual a criança possa alterar a lógica formal estabelecida, como quando brinca de montaria em uma vassoura. O estímulo a esse exercício de representação sobre representação, que é a discursividade, contribui para dar elasticidade e variedade ao ato perceptivo.

Leme explica que a influência da cultura foi muito decisiva em sua coevolução com a capacidade de abstrair do ser humano, posto que contou com traços decisivos da intersubjetividade, da apreensão de intencionalidade no outro e da cooperação, no desenvolvimento da capacidade de representar sobre representações, presente em sua condição com significados partilhados. O trabalho de Leme apresenta ilustrações das interações possíveis entre afeto, cognição e cultura no processo de aprendizagem.

Dentre os consensos estabelecidos entre afeto e cognição, Leme relata o que atribui à curiosidade e seu impulso exploratório, como uma motivação para a aprendizagem. A motivação para a aprendizagem ocorreria, assim, em dois níveis de funcionamento: “Um mais ancestral, partilhado com outras espécies, é mais automático, controlado pela novidade de estímulos (…) outro, mais complexo, seriam as metas para aprendizagem, que envolvem mais dimensões cognitivas e afetivas, se processam de modo mais deliberado e, portanto, sob intervenção da consciência” (p. 717).

A metacognição é realçada por Leme como um atributo essencialmente humano na sua habilidade de atentar e controlar a própria atividade cognitiva, monitorá-la, avaliá-la e alterá-la, reestruturando o conhecimento. “Ao que tudo indica, a cultura tem uma influência decisiva nesses processos, pois, não só define sua direção mas ainda os facilita mais ou menos conforme o avanço dos conhecimentos por ela alcançados” (p. 718). Trazendo essa formulação para o tema do consumismo, pode-se deduzir que o funcionamento psicológico, fruto da adaptação ao longo da evolução, pode muito bem ter se deslocado da sanha consumista irrefletida de sucesso e felicidade para abstrações e deliberações decorrentes da consciência imaginante e sua relação com o simbólico e a realidade objetiva.

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