DIÁRIO DO NORDESTE– EVA – Fortaleza, 31/08/1997

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[Capa] A cantora maranhense Anna Torres, intérprete da música “Mestiça”, de autoria de Flávio Paiva, posou para um clic da fotógrafa Cláudia Guimarães.

[Editorial] Mestiça, sim
A fama de mulher sensual brasileira é conhecida nos quatros cantos do mundo. Título conquistado graças à grande mistura de raças, que ninguém mais que ela representa tão bem. O resultado disso, é claro, inspirou fortemente todas nossas manifestações artísticas, da música, artes plásticas e moda ao cinema e literatura. E agora, mais uma criação acaba de sair do forno. É a música “Mestiça”, uma das faixas do CD “Terra do Nunca”, de Flávio Paiva, lançado esta semana em Fortaleza. 

A música de Paiva homenageia a bela mistura de etnias que gerou a mulher brasileira e também nos serviu de inspiração para nossa reportagem de capa.Colhemos opiniões de antropólogas sobre a condição da mulher mestiça brasileira, sua beleza e os preconceitos que ainda surgem à frente. Não faltou o depoimento de uma bela “cafuza, guerreira”, como disse Flávio Paiva, a cantora maranhense Anna Torres, que não por acaso é intérprete de sua música “Mestiça”.

Sensualidade – A mulher brasileira 

Na música, nas artes plásticas, na televisão e na literatura. Em todas essas manifestações artísticas há o traço marcante da mulher brasileira, uma síntese da mistura de diferentes etnias que formaram a população do País. Quem não se lembra da brejeirice e sensualidade da personagem Gabriela, do livro homônimo de Jorge Amado e eternizado na tv pela atriz Sônia Braga? Ou das mulatas do pintor Di Cavalcanti? São exemplos do tipo genuinamente nacional que marcaram épocas e têm em comum a inspiração que a brasileira provocou nos seus criadores.

Você já parou pra pensar, com um pouco mais de atenção, sobre as características dessa mestiçagem brasileira? Um típico exemplo é a mulata, resultado da mistura de negro com branco, diriam de cara os mais desavisados sobre o assunto. Mas a antropóloga Verônica de Paula, professora da Universidade Estadual do Ceará, garante: “pela própria história da formação da população brasileira, com certeza, todos nós somos mestiços”.

No Ceará, acaba de “sair do forno” uma música que homenageia essa mistura de etnias que gerou a mulher brasileira. Em “Mestiça”, (ver ao lado), uma das faixas do CD “Terra do Nunca”, segundo trabalho autoral de Flávio Paiva e lançado nesta semana em Fortaleza, está clara a referência à essa mulher brasileira: “Vem me abraçar nessa alma, de negro, de índio e de branco também. Bela mistura de vida silvestre, de fera na rua, de reggae e torém”, diz um trecho da música.

E quem canta essa música, como as demais do CD, é a maranhense Anna Torres, uma “cafuza e guerreira”, como define o próprio compositor. Melhor intérprete do Festival “Canta Nordeste 94” , realizado pela TV Globo, Anna Torres, 32 anos, tem raízes índia, negra e branca: “No Brasil se fala em negro, índio e branco. Eu cresci assim, sem saber, na realidade, minha identidade. Tenho pele clara, cabelo enroladinho e rosto redondo”.

A cantora, que atualmente reside no Rio de Janeiro, diz que, no Brasil, muita gente não pára para pensar um pouco mais na sua miscigenação, nas suas origens. “O País é rico em etnias e só tem a ganhar com isso. A mulher brasileira é diferente, com esse swing, sensualidade e tempero que só a gente possui”, acredita. Anna, no entanto, afirma que não dá para tapar o sol com a peneira: no meio de toda essa mistura de povos há ainda muito preconceito, principalmente o de poder aquisitivo.

A antropóloga Verônica de Paula acha a mestiça brasileira, cantada em prosa e verso, extremamente bonita, mas faz uma ressalva: “apenas aquelas que têm status. Fica difícil resguardar certos dotes físicos e até intelectuais quando não se tem condições financeiras”.

A professora da Universidade Federal do Ceará, Simone Simões, também antropóloga, diz que a excentricidade da mulher brasileira reside na cor e na forma como ela é usada: “Essa mistura de etnias faz com que a brasileira seja tão sui-generes em todos os sentidos. Transmite sensualidade muito grande, razão pela qual é muito explorada”.

Simone é clara quanto à exploração da sensualidade feminina brasileira: “concordo. É uma opção dela.”. Por outro lado, festeja uma mudança, embora lenta, do comportamento em relação aos negros e mulatos, depois de muita luta: “Ainda existe muito preconceito, mas o espaço está mais aberto para eles. Houve evolução muito pela luta do movimento negro”.

Flávio Paiva, o autor, de Mestiça, acredita que raros povos parecem ter tanta chance de serem felizes quanto o mestiço. Livre das correntes culturais maniqueístas e fortalecida pela crescente integração feminina, a mistura esclarecida tende a abominar o preconceito, a valorizar suas matrizes étnicas e a usufruir da riqueza da diferença bem distante das limitações das castas. “É o nosso segredo guardado, sem motivo, em estado de fósforo frio, como desafio maior para uma nova era de grandes descobertas”. 

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História – Exaltação dilui o conflito

A histriadora Simone Souza, professora do Curso de História da Universidade Federal do Ceará, considera que toda a exaltação dessa mistura de etnias contribui para diluir o conflito, como se no processo de colonização a mestiçagem ocorresse de forma não conflituosa, o que não é verdade: “A própria letra dessa música ‘Mestiça’ revela o que estou afirmando. A literatura didática também”. 

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