Jornal O POVO – Sábado, Fortaleza, 20/09/1997

Wander Nunes Frota – Especial para o Sábado

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Com Terra do Nunca, Flávio Paiva lança um desafio musical a este país sem porteiras e mostra o conceito do que chama de música plural brasileira.


A música brasileira da atualidade vem conseguindo romper com alguns rótulos limitadores de renovação e, dentro dele, o novo CD autoral de Flávio Paiva. Terra do Nunca, que conta com a interpretação da maranhense Anna Torres e arranjos do baixista Paulo Lepetit, de São Paulo, aponta em seu conjunto de signos para uma “visão de paraíso”, dentro de uma muito própria utopia caboclo-urbana. Em quase todas as composições, encontra-se o fenômeno sócio-histórico e antropológico da mestiçagem/miscigenação.

Flávio Paiva sempre se demonstrou uma maquininha espantosa de projetos – todos altamente factíveis, pelo menos dentro de sua cabeça privilegiada. Para mim, então, Terra do Nunca é por excelência o lugar em que fomos colocados através da lente antropológica de Darcy Ribeiro – no momento exato em que este criou o conceito de “transfiguração étnica” para explicar a miscigenação à brasileira que inclui o índio – única no mundo sob todos os ângulos possíveis e impossíveis. Tem-se visto nos últimos anos que os intelectuais querem por fina força nos impingir uma miscigenação que apaga o índio de nossa etnia. Nisto, a dedicatória do CD ao pataxó Galdino, queimado vivo em Brasília (que aparece em espiral propositalmente mas desenhada, no fundo do disco) torna-se sutilmente emblemática.

O aspecto de concept-album de Terra do Nunca é exposto através de um esquema meio complicado que, paradoxalmente, salta com relativa facilidade aos olhos e sobretudo aos ouvidos de quem quiser se levar pela !música plural brasileira” ali contida. Esta “MPB”, preservada em sua integridade e magnitude de símbolo nacional devidamente compactado pela indústria cultural, teima em sobreviver de maneira horrorosa nas hostes da alternatividade propositiva carregada nas costas por gente como Flávio Paiva. Peitar a ordem estabelecida e sedimentada em interesses conservadores é uma tarefa árdua. Nesse aspecto, o autor de Terra do Nunca se vale exatamente do espírito dos tempos atuais para se colocar, não de encontro ao passado, mas para se projetar ao futuro com uma confiança de arrepiar.

Terra do Nunca lança um desafio útil ao futuro musical deste Brasilzão sem porteiras, sem no entanto carregar em sua concepção linguagem barata de manifesto. É um trabalho gostoso de ouvir, de dançar e de pensar, mantendo vínculos muito estreitos com nuanças de uma história não-oficial que está na nossa cara e corre em nossas veias sem que a notemos. O CD de Flávio Paiva é uma espécie de “O que é, o que é?”, cujas origens estão calcadas na nossa experiência como reflexo do que somos para nós mesmos. Aliás, a lamparina que aparece no livreto do disco se assemelha, e muito, àquela que carregava em pleno dia de Sol um certo filósofo grego na sua busca por algo mais real.

Ao invés de simplesmente apontar para soluções prêt-a-porter de “identidade nacional”, o trabalho vai além e questiona construtivamente aquela idéia herdada do modernismo literário. Está por demais provado que o grande espelho onde se mira o olhar de nossa hoje modernidade intelectual distorceu plenamente todo um lado sócio-histórico dos acontecimentos e manifestações culturais e artísticas nos últimos oitenta e tantos anos. Ao que me parece, Terra do Nunca não faz força para esquecer disto, e é exatamente este aspecto que, a meu ver, se torna se compromisso mais implícito e explícito – por cima de pau e pedra.

Na grande ciranda da indústria cultural de todos os tempos – que, impávida, já se arrasta desde a autonomização dos meios de reprodução, difusão e consumo da música popular – há fatos estritamente comerciais que, entre outras coisas, nunca puderam vir à tona para não desmistificar os mecanismos que a regem. Terra do Nunca mostra suas armas de maneira a tentar neutralizar (ou pelo menos diminuir) as causas e os efeitos desse vício estimulado quando, mesmo procurando não rotular mais nada, rotula-se a si mesmo como “música plural brasileira”. O disco, quero crer, é a saudável contramão desse viés somente comercial que a música ganhou no início do século nos EUA e na Europa e, a partir dos anos 20 e 30, no Brasil.

Contudo, este apenas aparente paradoxo revela que sua causa não é jamais em proveito localizado senão para atrair simples olhares para si mesmo – outros que não os meramente descuidados (para não dizer “alienados” como prefeririam Adorno & Horkeimer). Como última impressão, é interessante notar que Terra do Nunca jamais fecha as portas a novas definições ou interpretações do que venha a ser MBP (popular ou plural) a partir do seu lançamento. O CD de Flávio Paiva, com estética musical compartilhada com Anna Torres e Paulo Lepetit é apenas um gancho, uma opção de ponto de partida (com muitos méritos próprios), para a nova descoberta da ainda pouco explorada biodiversidade musical brasileira.