O manifesto dos invocados
Jornal O POVO – caderno DOM, coluna DAS ANIGAS, p.34, 21/12/2014

Por Demitri Túlio

invocado_omanifestodosinvocados

Invocado é dessas palavras transubstanciadas na boca do cearense. Povo que berra “sai do mei, bandebesta!” e desaba pelo mundo. Sem medo de atolar na areia da praia ou no lamaceiro dos “cu doce” que querem cunhar o que é bom ou peba pros outros.

É do novelo da língua, dizer próprio daqui. Do vai e vem do tapuia que se entrançou com o magote de iberos e africanos desterrados por cá. Invasores, invadidos.

Invocado, no caso, não está na significância do arrochado, fulo da vida, do virado no ovo da cascavel ou do convocado por quem quer que mandou intimar.

0 mote pra esta conversa é a revelação da virtude dos que têm o ânimo fundante, neles mesmos, do jeito invocado de ser musical no Ceará.

A definição não é minha. É coisa da cabeça independente e obstinada de Flávio Paiva. Cabra que vai fazendo as coisas, independente do olho gordo ou dos divergentes. Divergir é bem-vindo.

Foi ele quem me disse, e eu fui ler e ouvir, sobre a Dança dos Negros. Um batuque assinado por Alberto Nepomuceno, o maestro cearense dos tempos da luta pela libertação dos pretos daqui.

Um ano antes da Abolição no Brasil, o maestro Nepomuceno concebeu para as salas de concerto (1887) da província uma exaltação sinfônica pela soltura dos escravizados.

Uma manifestação clássica transpassada pelo batuque afro. Isso, lá pelo fim dos 1800 e tarará…

Seu Alberto tinha música dentro dele, atravessada de qualquer tempo. Tanto que foi revisitada, este ano, por Flávio Paiva, André Magalhães, a Banda Dona Zefinha e a africana Fanta Konatê.

Ainda bem que fui, aos convites de Flávio, encontrar Dona Zefinha. Mais clown de feira do que nunca, cheia de cantorias, tuba, arrastado de penico, celo, atabaque, chocalhos, piano, pilão, rabeca, coco, viola, estalados de dedos, sax, assobios, coiós, ditos, apitos, vaias, trompete, trombone, ferros, pífano… Erudita e popular.

Dona Zefinha é também do naipe dos invocados. Não há nela nenhum complexo de inferioridade porque é devota de Itapipoca. De jeito maneira. Talvez por isso, caiba em todo o mundo e faça dançar qualquer bicho de orelha independente da Babel.

É impagável a reinvenção de A Rural, de Neo Pinel, um clássico do cancioneiro canelau. O clwon Orlângelo Leal e sua troupe passeiam na graça.

“Nós ramo rê o má, nós ramo é rê o má!”, canta Zefinha. Uma gaiatice musical que liquidifica fonemas árabes meia boca, nossa herança moura, sotaques ibéricos, “flaitices” francesas e a viçassem do cearense…

Bem, tinha mais para escrever. Mas fico por aqui. Quiserem saber mais sobre o Manifesto Musical dos Invocados, é ler, ouvir e dançar com livro/CD Invocados do Armazém da Cultura. Uma joia!

DEMITRI TÚLIO é repórter e cronista do O POVO
demitri@opovo.com.br

Fonte: Jornal O POVO