Enquanto a sociedade tenta se encontrar pela geografia das redes sociais e, por vezes, das ruas, grupos instalados no poder, e outros que dele foram desalojados, insistem nos métodos polarizadores, impedindo o aprendizado coletivo de uma nova política. Criou-se uma espécie de gangorra excludente, com lugar apenas para quem senta nas extremidades. Até mesmo aos que estão na parte que toca o chão parece haver uma aposta na lógica do movimento da prancha, que na sequência seria a chegada ao alto novamente.

Acontece que o eixo central de apoio da gangorra – que é a democracia – está fragilizado pelos exageros de impulsos desmedidos dos dois lados. A pressão para manter esse movimento binário é tão grande que no lugar de um solo firme de ideias e ideais resta um pisoteado de chavões alienantes. Tem sido raro, mas vez por outra aparece alguém refletindo fora da gangorra. O filósofo húngaro Peter Pál Pelbart, professor da PUC-SP, está lançando um livro no qual revolve pontos de grande valor para o debate que de fato importa.

Nas páginas de Ensaios do Assombro (n-1 edições, 2019), ele instiga o leitor a pensar sobre a potência multitudinária do presente. “Não se trata de retomar o desgastado mote ‘outro mundo é possível’, mas (…) vislumbrar as linhas de força que apontam em direções diferentes daquelas que até ontem pareciam impor-se como um destino” (p.112). No momento em que a sociedade começa a perceber que o que ela tem de mais “real” são “as suas possibilidades” (p.128), há um abalo nas convicções estabelecidas.

Diferentemente da massa, a multidão é heterogênea, inapropriável e imponderável, por ter sua gestualidade mais incerta, mais diversa e mais plural. Mas os extremistas não querem ouvir falar nisso, e ficam se protegendo em um contraditório espelhamento de falsas verdades e tentativa de controlar a população “por meio de suas divisões” (p. 42). Infiltram-se nas mobilizações com seus discursos ultrapassados como se tudo fosse mercadoria ou propriedade. Pelbart alerta: “É a força de um Acontecimento, não pertencer a ninguém” (p.161); e esclarece: “O que está em jogo (…) é fazer com que o enfrentamento não aconteça” (p. 45).

As condições para a manutenção da racionalidade da acumulação – ante o fenômeno que nos últimos dez anos venho conceituando de Cidadania Orgânica – continuam, segundo o autor, atreladas ao sacrifício da população imposto pelos múltiplos ataques de subjetividades patrocinados pelos beneficiários das concentrações de riqueza e de poder. O crescimento da noção de comum na vida contemporânea não tira a relevância do Estado, porém, na visão de Peter Pál Pelbart, com o “desaparecimento do modelo estatal de revolução” (p. 51) é preciso “sair do paradigma de governo” (p. 85), simplesmente porque “o governo não está mais no governo” (p. 101).

Os acontecimentos para transformações consistentes contra a “crescente redução da vida à sua dimensão manipulável” (p. 14) pedem, segundo o autor, “posicionamentos mais oblíquos, diagonais, híbridos, flutuantes” (p. 107). Isso passa por novos modos de vida e pela capacidade coletiva de persistir. Assim, os novos “revolucionários devem singularizar-se pela densidade de pensamento, afecções, fineza, organização, e não por sua disposição à cisão” (p. 66). Provocações como essas de Pelbart são urgentes e necessárias.