Foi um impacto positivo para mim ver de perto e fotografar as crianças do morro do Castelo Encantado, no Mucuripe, deslizando dunas abaixo em pedaços de madeira parafinadas na base. Uns desciam em pé e outros sentados nos pequenos bancos fixados na popa das carretilhas feitas por eles mesmos em pau d’arco, com reverentes semelhanças aos barcos de pesca de seus pais.

Tão impressionante quanto essa espontânea e criativa prática desportiva e de lazer era a maneira como aqueles garotos se organizavam a fim conseguir os insumos para aquela diversão marginal coletiva. Em texto publicado no “Um Jornal Sem Regras” (1985), chamei de ‘cooperativismo espontâneo’ o gesto de companheirismo e apoio mútuo que eles exerciam para brincar de escorregar livremente.

Depois dessa e de outras idas e vindas àquele território, berço de manifestações abolicionistas, da saga dos mestres Jacaré, Jerônimo, Tatá e Mané Preto, da poeta Mundinha, da dona Olympia labirinteira, da surfista Tita Tavares, das procissões de São Pedro e Iemanjá, da culinária do mar, do reisado da Saúde, das lutas pela sobrevivência do riacho Maceió, enfim, de tantas pessoas e acontecimentos admiráveis, encontro vestígios inquietantes das carretilhas nas ações colaborativas do Acervo Mucuripe.

Criado na Varjota, em 2017, pelo turismólogo Diêgo di Paula, que é nativo do bairro, esse acervo transbordou da pequenina e simpática casa que o abriga, espalhando signos de reconstruções da memória comunitária pelos becos e ruas estreitas daquelas áreas. Pinturas, frases e arte-lambe distribuem-se pela vizinhança como recortes de lembranças do vasto mundo do Grande Mucuripe, que procura a sua consciência de lugar em Fortaleza.

Meninos do Castelo Encantado. Foto: Flávio Paiva (1985).

As intervenções feitas no local por influência do Acervo Mucuripe vêm transformando muros e paredes em galerias formadas a partir da copresença e das interioridades das moradoras e dos moradores que, ao receberem convites do Diêgo para cederem espaços externos de suas residências à divulgação da história do bairro, sentem-se confortáveis em despertar para tudo o que guardam em si com relação a um histórico de vidas removidas, sonhos deslocados e pressões desmedidas da especulação imobiliária.

Toda cidade tende a ter zonas mais prestigiadas e outras largadas à própria sorte. No ponto de referência frágil e impulsivo em que está o Acervo Mucuripe em seu esforço de guardião e difusor da memória do bairro, essa situação é duplamente complexa, considerando-se a realidade de um lugar altamente valorizado e, ao mesmo tempo, tão marginal. Esse é o dilema posto a quem se propõe a entrelaçar cadeias de experiências para anular barreiras e se encontrar no mapa da cidadania em Fortaleza.

Em conversa com Diêgo di Paula, promovida pelo portal UrbNews na terça-feira passada (16), senti que, para ele, a dinamização da memória não é apenas um desejo tópico de reconhecimento espacial e de visibilidade, mas uma necessidade de requalificação de habitabilidade, de mais consideração por parte das políticas públicas e de um novo agenciamento do sentido de cidade, em que o valor do bairro não seja determinado apenas por negócios especulativos, mas principalmente por sua solidez em termos de conteúdos históricos, culturais e turísticos.

O Acervo Mucuripe é uma expressão de cidadania orgânica voltada para o compartilhamento de cores e afetos, sem submissão aos domínios das narrativas oficiais e às racionalidades verticalizadas. Cada avanço dessa iniciativa é um passo para a revitalização da cultura das pessoas que migraram do interior e das que nasceram nas proximidades da Enseada do Mucuripe e que, na condição de jangadeiros, rendeiras, ativistas ou brincantes de carretilha, assinam a permanência de um lugar que merece tratamento justo na vida social, cultural e econômica da cidade.

Fonte
Jornal O POVO