A década das cantoras
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8

Terça-feira, 28 de Dezembro de 1999 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Música não é uma questão de gênero, mas nada como uma enxurrada de boas cantoras para realçar a importância da dimensão feminina na renovação da alma de um país em gestação. Elas foram chegando, com inteligência e desenvoltura, assinaram seus nomes na galeria da música popular brasileira e fecharam a década com a laca irretocável do canto plural. Fazendo música por amor, arte ou diversão, muitas foram além da conquista do reconhecimento por valor artístico e conseguiram chegar ao mercado. Mas o maior mérito de todas está no brilho que deram ao seu tempo, consubstanciando o perfil diferenciado e inigualável da nossa música.

Chegamos de cara nova ao tão propalado ano 2000. Quem desejar sentir o cheiro, a cor, a tez e o toque dessa florada, e ainda não tiver se habilitado, é só ficar atento à variedade de jeitos e sonoridades de zelo feminino existentes em todas as regiões do Brasil essencial. A explosão das cantoras é uma dádiva dos turbulentos anos 90 para a música brasileira. É provável que muitas dessas artistas sequer tenham pensado no quanto cooperaram para impedir a nossa imobilidade criadora. Talvez também não sejam identificadas por essa contribuição. Não fosse a cumplicidade dessas mulheres, provavelmente não teríamos revelado muitos dos virtuosos compositores e músicos que surgiram na cena da música plural da década.

Adriana Calcanhotto, Cássia Éller, Fernanda Takai, Kátia Freitas, Daúde, Marisa Monte, Olga Ribeiro, Fernanda Abreu, Zizi Possi, Cris Braun, Paula Toller, Daniela Mercury, Zélia Duncan, Simone Guimarães, Luciana Pestano, Carol Damasceno, Belô Velloso, Mona Gadêlha, Rita Ribeiro, Vanessa da Mata, Titane, Vange Milliet, Eliana Printes, Patrícia Amaral, Anna Torres, Badi Assad, Carmina Juarez, Rosa Reis, Vânia Bárbara, Rebeca Matta, Klébi Nori, Marta Aurélia, Kátia B. (Bronstein), Laura Finocchiaro, Maricenne, Válerie Mesquita, Myriam Eduardo, Vange Leonel, Karine Alexandrino, Virgínia Rodrigues, Mônica Salmaso, Lívia França, Vânia Abreu, Renata Arruda, Ana Carolina, Paula Tesser e Cris Aflalo, estão aí para contar a história, porque fizeram a novidade dessa história.

O chamego da inovação, da originalidade e da descoberta de talentos não aconteceu somente com as meninas dessa geração. Revelou senhoras de idades avançadas, mas turbinadas pela vivência artística terra-a-terra, como Helena Meirelles, Selma do Coco, Dona Militana, Socorro de Madre de Deus e Mazé do Bandolim. Além do desvelo das divas emergentes que, cada qual à sua maneira e tamanho, moldaram parte significativa da nova música popular brasileira, os anos 90 foram fermentados ainda pela contemporaneidade de algumas das nossas estrelas eternas. Maria Bethânia chegou com seu “Âmbar” vigoroso, Gal Costa marcou presença na volta do “Vapor Barato”, Rita Lee assumiu o mais que merecido símbolo de “Santa Rita de Sampa” e Elza Soares gravou discos e ganhou a invenção da sua própria vida no livro “Cantando para não Enlouquecer”, de José Louzeiro. Téti apostou em um CD de resgate do seu “Pessoal do Ceará” e Ayla Maria investiu em discos e programas de tevê.

Transpirando atitudes em incursões pra lá do valor sensual da audição, as cantoras da década de 90 incrementaram a variedade mestiça como sinal de que o segredo está nas múltiplas opções. Fizeram e continuam fazendo de tudo que deu no juízo. Da percussão regional ao eletrônico urbano e em misturas sofisticadas e especiais. Assumiram um papel fundamental no olhar brasileiro de apenas cinco séculos, fazendo confissões e expondo desejos refreados pela ignorância das normas inflexíveis. Permaneceram divinas e derrubaram muitos mitos da clausura deslumbrante gerada pela imagem pública. Quem aprecia a música de Marina Lima, pôde conhecer seu corpo em um ensaio fotográfico publicado na revista Playboy. Por que não? A abertura de espaços entre o risco do deboche e a censura da prudência excessiva fixou-se pela determinação e pela postura diante da vida.

Assim como os três últimos discos de Adriana Calcanhotto, com destaque para o “Senhas”; o primeiro e o de remixes da Daúde; “Ecoglitter”, de Laura Finocchiaro; “Inseto Raro”, de Titane; “Pão e Poesia”, da Olga Ribeiro; os dois de Mona Gadelha; “Tantas Coisas”, de Rebeca Matta; “Síntese” de Marta Aurélia; “Âmbar”, de Maria Bethânia; “Arrepiô”, de Vange Milliet; e “K”, de Kátia Freitas, entregam mais do que anunciam, muitos outros estão aí para atestar esse implacável acerto de contas da alma feminina. A ausência, nesta argumentação, das figurinhas carimbadas para o sucesso comercial e passageiro, pode provocar sensação de vazio nos que apenas ingerem o que lhes é empurrado goela abaixo pelos modismos da indústria cultural, com parâmetros capciosamente trabalhados à base de gráficos de comercialização, publicidade, propaganda e promoção de venda. Prefiro a música brasileira que dá prazer aos ouvidos e orgulho cultural aos que independem de separatismos geográficos para gostar do Brasil. E esta música inventiva e diversificada, tem muito a dever ao canto acurado das nossas verdadeiras musas.