A encomenda de outro mundo
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 24 de Abril de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Demorou uma vida inteira, mas o pai, um mês antes de morrer, contou ao filho que tinha sido ajudante de um pintor maneirista da renascença italiana. O filho, a princípio, associou o caráter hiperbólico da revelação ao estado emocional do pai, que estava com os dias contados. Doze anos depois, na ocasião em que acabara de se separar da mulher, uma interrogação dessas que vêm sem ser chamada instigou o filho a desvendar qual o motivo e com que intenção o pai havia feito aquela confissão.

O enigma parecia ter em si mais sentido do que a sua possível solução. Assim, o filho tratou de sair em busca da fantasia do pai, indo ao habitat da metáfora. Queria encontrar algo que explicasse a razão de, nos anos trinta do século passado, ao visitar os afrescos do Monte Oliveto Maggiore, seu pai ter tido a convicção de que vivera, cinco séculos antes, uma outra vida naquele lugar. A trama é do romance “O Conto do Amor” (Companhia das Letras, 124p. 2008), do psicanalista e ensaísta Contardo Calligaris, cuja narrativa consegue a maestria de voltar no tempo indo para frente.

O autor desenvolve habilmente a história enunciada nos complexos universos simbólicos do amor e da figura paterna, tendo como atmosfera dramática a estética do tempo absoluto. Em cinco séculos, em algumas décadas ou na atualidade, a desenvoltura da narrativa não força o tempo e, com isso, encontra precisão no aleatório. O filho havia passado tantos anos ausente da Itália que já nem conseguia sentir direito sua condição de italiano. Esse estado de porosidade de pertença e de atemporalidade permite que ele enverede pela descoberta de si na reelaboração literária.

A relação do filho com o pai, que nunca tinha tempo para conversar sobre algo que sempre insinuava ter a dizer, é intrigante para o protagonista e para o leitor. O pai se encontrava muitas vezes com o filho, mas a conversa era pouca. Predominava a incomunicabilidade da fala contida, da expressão repetida de que “não havia tempo para conversar” e do lamento de que “não deu tempo”, de que não houve a condição para um bate papo aberto, uma troca amigável e despretensiosa de palavras. Entretanto, o filho via o pai passando horas e horas rabiscando considerações sobre a pintura da Renascença italiana, sua “paixão exclusiva”.

A obra expõe à figura paterna em um nítido estimulo à disposição do filho de enfrentar o desafio de descobrir que o amor existe em meio a um enigma. É entrelaçando indícios que o filho entra na provocação de recuperar o pai de mundos supostamente perdidos. Leva consigo o senso aplicado da investigação, mas de maneira despojada de fundamentações teórico-clínicas. Para achar o pai, desaparecido no tempo do amor, age como um Pinóquio à procura do velho Gepeto na barriga da Baleia Azul. Curioso é que o autor do boneco de madeira que conquistou o direito de virar menino, Carlo Collodi (1826 – 1890) é também florentino e tem o mesmo nome do protagonista da história de Calligaris.

A aventura de Carlo, no romance “O Conto do Amor” se dá na medida prática do entendimento que ele vai tendo de uma paixão, onde ficou ancorada a referência de felicidade do pai. Em sua caminhada, o motor da ausência funciona desde o antes ao depois. A busca pela realização da encomenda feita pelo pai não se dá pela capacidade cognitiva da razão, mas por um sentimento de preenchimento do vazio criado pela originalidade da revelação do pai. As pistas levantam suspeitas, propensões mentais e dúvidas quanto ao que poderia tê-lo reprimido a ponto de subordiná-lo ao silêncio.

Toda obra é autobiográfica. Umas mais, outras menos. Neste livro, percebe-se o autor revisitando seu país de origem e envolto nas emoções que o ligam e desligam do enigma exposto. O filho, seu alter ego, revê experiências pessoais e se renova com elas. Ao receber e recordar de influências do que foi vivido pelo pai e pela relação que este havia estabelecido com o renascimento italiano, delineia o seu próprio comportamento fantasioso, por meio do qual o pai preservava sua idéia de encanto do mundo.

O interesse do pai pela arte sacra dos séculos XV e XVI aparece como um estratagema de proteção ao zelo familiar, de forma que ele pudesse transitar pelas paisagens que constituem o pano de fundo daquelas pinturas, onde ele estava escondido com sua amada. Só lendo para ver, para imaginar a transversalidade da situação. O autor lembra que é fora das áreas centrais das pinturas, onde as pessoas simples passam com seus burrinhos, onde lavram a terra, que a Renascença se expressa.

A mensagem cifrada que o pai passou ao filho antes de morrer sugere uma revelação que teria recebido ao entrar no claustro principal da abadia, onde uma série de afrescos simulam a história de São Bento, pintados por Luca Signorelli (1445 – 1523) e Giovanni Antonio Bazzi (1477 – 1549), conhecido como Sodoma. Ali, nos anos trinta do século passado, ele teria se sentido verdadeiramente em casa. A revelação foi tão contundente que não parecia um simples déjà vu. E não era. Assim segue o texto, construído a partir de interpretações que surgem conforme as evidências incompletas, sem julgamentos precipitados.

Depois de ler diários, cartas, pesquisar sobre o maneirismo, seus pintores e ajudantes, o filho parte para a viagem, acompanhado apenas por uma foto do pai, quando este tinha 20 anos. Em Monte Oliveto Maggiore, ele vê nas características neotênicas do pai a identificação com as imagens de um jovem e de um velho, estampadas nos temas dedicados a São Bento. Naquele momento, o filho se cobre em um rosário de “talvez”. Sai observando as telas e produzindo hipóteses. “Por que teria escolhido ser ajudante de Sodoma?” (…) “O que queria dizer com isso?”. Calligaris enche mais uma vez o protagonista e o leitor de indagações.

O romance evolui sempre tendo o pai como plataforma para a experiência do filho. Revela que muitas vezes as grandes mensagens da vida estão no que não é dito. Enquanto busca chegar a informações sobre os ajudantes de Sodoma, o filho encontra uma história para si, um espaço de intimidade emocional e de simpatia na plasticidade do (re)encontro promovido por uma tela modificada. O desenrolar dos acontecimentos se faz por meio de uma heurística que ora guarda a seqüência das descobertas, ora ajusta fragmentos de memórias, e ora recorre às referências da revelação do pai.

As impressões sobre arquitetura, política, a guerra, especialmente, sobre a Florença de Filippo Brunelleschi (1377 – 1446), arquiteto florentino destacado pelo uso da perspectiva de profundidade em suas obras, e o fascismo de Benito Mussolini (1883 – 1945) imprimem contrapontos de realidade à narrativa. O “sonho de felicidade” do pai tivera que acontecer “distante do barulho da história”. Quem der uma lida no livro de Contardo Calligaris vai compreender o que pode uma semana de amor em tempos de ódio.

Em sua experiência estética, o pai só queria reagir à feiúra do mundo. Neste aspecto de vida retórica era um tipo Santiago, o mordomo do filme de João Moreira Salles (2007), que “vivia em um mundo que lhe parecia”, que inventava em si e para si. O livro “O Conto do Amor” é uma agradável oportunidade de trânsito pela liberdade da arte e da literatura. A liberdade da vida, onde o filho pode entrar com uma outra história na história do pai, refazendo uma experiência com outra experiência. Ao colocar os pés nas pegadas do pai, o filho entendeu muito bem porque ele ficara com a crença de ter vivido em outro mundo.