A solidão estética de Karine
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 10

Domingo, 01 de Setembro de 2002 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Karine não precisou inventar nada para ser o que é. Deixou rolar suas fantasias e, com a liberdade dos pintores do museu do inconsciente, desenhou um novo estilo no mapa da diversidade criativa da música no Ceará. Esboçando uma imagem para efeito de referência, pode-se dizer que seu repertório pop inusitado, divertido e marcado por hits aderentes está na órbita da lounge music e suas modulações sonoras híbridas da eletrônica com sentimentalismo retrô. Se a saudosa psiquiatra Nilse da Silveira estivesse por aqui, certamente diria que não há o que corrigir, senão estraga.

O disco Solteira Producta tem música de pista que pode ser tocada baixinha para quem quer dançar sem se mexer. Seu bate-estaca e samplers estão afinados cromaticamente ao timbre etéreo dos velhos órgãos. Beats eletrônicos seguindo as pulsações do coração em ociosidade. Muitos DJs, mestres internacionais do entretenimento das massas ritmadas nas pistas de dança, vêm trocando as sonoridades repetitivas e hipnóticas do trip hop pela calmaria melodiosa e o crooner da lounge music. O relaxamento com música em base downtempo, deixa conversar e traz de volta o também velho Martini e outros complementos alcoólicos das chamadas bebidas elegantes.

Mais do que o fashion e o glitter, próprios do personagem múltiplo e bem delineado que se funde na pessoa e na artista Karine Alexandrino, o CD conta com a competente sensibilidade de Dustan Gallas e Fernando Catatau na direção musical. Eles souberam compreender a suscetibilidade romanesca da cantora e a ajudaram a organizar essa história toda. Karine é órfã de um estilo que ainda não nasceu por aqui. Depõe de dentro da sua própria realidade entre calmantes e estimulantes naturais de uma cidade cheia de prédios, mas vazia de cultura urbana civilizada. É o alter-ego picante de si mesma. Atriz e personagem, sem distanciamento, que consegue ser ansiosa, histriônica, obsessiva, depressiva e evitante ao mesmo tempo.

Está no rol das mulheres alteradas, com muita honra. Com seus tipos, caras e bocas já esteve mais próxima das histórias em quadrinhos, seduzindo andróides como a Barbarella do artista plástico e ilustrador francês Jean-Claude Forest. Rita Lee disse numa entrevista ao Jornal do Brasil que ela era uma mistura da tenebrosa Morticia (vivida por Anjelica Huston no filme da Família Adams) com Nina Hagen (pioneira da new wave germânica). Em Solteira Producta aparece enigmática e cautelosa como a bailarina e espiã “neaderjavanesa” Margaretha Zelle, que se despia diante de um suposto ídolo hindu para arrancar segredos de guerra no início do século passado. Conhecida como Mata Hari, ela dançava com os seios cobertos apenas por dois discos de bronze. Uma heráldica da sedução que Karine, com o escudo de um sutiã comum, exibe com desenvoltura.

O título do seu disco é uma confissão de venda, um manifesto de intenção de bens e serviços das delícias da música e da carnalidade: Solteira Producta. Venda de um estilo. A capa tem um bandô alaranjado com fotos e traços em preto e branco, numa produção bem simples e simpática que embrulha a paródia dramática das encalhadas convictas e a oferta namoradeira das novas pin-ups e lolitas largadas ao erotismo como uma fêmea de babuíno. Karine tem fotogenia e um figurino atrevido, mas não cultiva o gênero da bonitona da festa. O hype dela é a provocação libertina. Performance pop com tudo o que as pessoas não esperam de uma cantora cearense.

O repertório de Solteira Producta tem alguns delírios que poderiam ser dispensáveis, mas é quase todo muito bom. Músicas como “Ninguém verá” (Karine e Catatau) e “Citation” (Valdo Aderaldo) estão completas em seus sussurrantes e melancólicos desesperos da eloqüência da paixão. Dentre os clássicos do devaneio amoroso, destacam-se “Quem não quer” (Wadey/Hayes/Grainger), versão de Rossini Pinto para “Black is Black”, e a também antológica “Feelings”, de Morris Albert. La Alexandrino gravou ainda sucessos como “Baby-doll de nylon” (Caetano Veloso / Robertinho do Recife) e “Ando Jururu” (Rita Lee). Tudo na tangência da lounge music, para o transe das galeras.

Na sua solidão estética, Karine agrega glamour à boneca de trapos de Nélson Gonçalves e Adelino Moreira, a sarada anti-heroína de “Meu vício é você”, que inconsciente sai pela noite e amanhece na rua, pecando só por prazer, vivendo para pecar. Com cara de desligada ela vai cortando com a gilete da ousadia os pulsos da mesmice que ronda os ares da juventude com código de barras. Solitária, mas não obscura em seu propósito de ser artista, tem público crescente na cidade. Não é fácil assumir uma arte fora de timing local, uma proposta que ainda não tem contexto no lugar onde ela mora. Karine está tendo que aprender a conviver consigo mesma e isso também não é fácil. Tornando-se aliada do seu próprio desejo, na infusão de cosméticos e modelitos, ela vai atravessando as noites longas e enfrentando a fotofobia dos lugares comuns protegida pela incerteza dos mistérios da arte.