A verba da utopia
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 6

Terça-feira, 03 de Outubro de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Tantas parecem ser as maneiras de tentarmos interferir na permanente construção do mundo quantos são os espíritos dispostos a desvendá-las. Existem atitudes para todos os gostos e compreensões. As conseqüências também deságuam em incontáveis peculiaridades. Das minhas modestas contribuições nesse sentido, percebo que a Verba da Utopia é a que mais chama a atenção das pessoas que convivem comigo e me conhecem de perto. Trata-se de um percentual que retiro de todo e qualquer ganho, resultante do meu esforço físico e intelectual, para multiplicar o que me encanta.

Carrego esse compromisso comigo mesmo, com o peso e o deleite de quem transporta asas mas pode com elas voar. A Verba da Utopia atende a uma necessidade do imanente e, por isso mesmo, sua aplicação dispensa padrões, conceitos e cobranças exteriores. É uma ação de respeito ao que vem de dentro, ao que está contido na transcendência dos sentimentos que regem a minha relação com o belo indefinido e indescritível que apresenta-se agradável aos meus sentidos. Quando racionalizo sobre essa sensação chego a pensar que tomei essa decisão como forma de praticar a libertação em plena sociedade de consumo.

Antecedendo a cada capítulo que a memória permite reler da minha vida, vejo claramente em epígrafe uma lembrança de que existe algo mais para a gente fazer do que a simples gestão da lida diária. Certamente não devo ter inventado nada disso. O processo cognitivo que me levou a essa determinação tem muitos autores anônimos. Sou profundamente grato a todos eles, e a melhor maneira que encontrei para retribuir essa noção adquirida foi prolificar encantos. Multiplicando espontaneamente o que nos enleva, exercemos uma influência direta sobre o nosso ser, imunizando-nos contra a síndrome do vencedor infeliz. Moléstia que tanto perturba a sensibilidade e promove o embrutecimento.

Temos a propensão de superestimar os feitos admiráveis da inteligência em detrimento do alicerce invisível que a consciência nos oferece. Parece-me incontável o número de executivos eficientes que afetivamente são ineficazes. A inteligência pode ser artificializada e transferida para as máquinas. A consciência, não. Quando observamos o mundo amando, como fazem as crianças, somos capazes de nos entreter conectando sentimentos e sentidos. Antes de partir recentemente para a dimensão que se supõe existir além da vida, o meu primo Fonte, avocado pela sabedoria da sua bondade serena, deixou-nos de presente a máxima de que devemos fazer sempre o que é importante e nunca o que é urgente.

A Verba da Utopia atua no plano da autoconsciência. Portanto, é exclusiva do senso evolutivo de cada pessoa em sua singularidade mutante. Faz parte da vontade funcional que nos leva a sentir o que estamos sentindo. Algo para lá da emoção esperada. Algo para lá do que pensamos compreender. Algo capaz de calar o pensamento e disparar o coração. O encanto que nasce da nossa sinceridade interior, tem efeito repentino, não dá aviso, nem depende dos despachantes comissionados dos amores consignados de mercado. Com tamanha importância em nossas vidas, esse tipo de reação pessoal, mas não privada, não poderia deixar de ter um instrumento livre e reverberante.

Das raras e reservadas vezes que tenho comentado sobre a Verba da Utopia, meus interlocutores se apaixonam de pronto pela idéia. Costumo mostrar o quanto é fácil aplicá-la, utilizando o exemplo do meu comportamento diante de um livro que me ilumina. A necessidade de comprar vários exemplares, para distribuir com outras pessoas que podem também se encantar com o seu conteúdo, aflora tanto por intuição quanto por racionalidade. Há casos em que a simples compulsão me leva a bancar o desejo latente com recursos da Verba da Utopia. E não ligo para as reticências. Muitas vezes a obra representa apenas o sinal de um autor talentoso que precisa de impulso para acontecer. Embora retraído nas entrelinhas, o sublime sempre arranja um jeito de acenar a quem o procura.

Nas situações em que a Verba da Utopia recebe a interferência da razão, sua natureza tangencia algumas áreas devolutas da solidariedade. Temos limitado o poder revolucionário da mobilização solidária aos esforços de alívio em tragédias e circunstâncias marcadas pelo negativismo das dificuldades. Essa palavra vem do latim e faz uma associação com soldare, soldar, estar junto, grudado com. Não existe nada que impeça a sua utilização no sentido de adesão a uma causa estruturada ou não, que tenha o mérito da conquista e que, ao ser ampliada, pode continuar alterando positivamente o curso das movimentações culturais, políticas, espirituais e sociais.

Por conseguinte, mesmo com tão sutil aproximação, a Verba da Utopia não confunde-se com solidariedade. Ela age nos campos da vida onde sonhar influi na realidade e nem sempre nos damos conta. É uma espécie de dízimo sem as amarras dos dogmas, uma dotação orçamentária concreta que passamos ao controle da força abstrata do encanto. O melhor na prática desse prazer é a consciência do desapego aos valores calcados em controles e resultados presumíveis. Coisas que já estamos colocando as máquinas de inteligência artificial para perfeitamente fazer por nós ou sob nossa orientação. Mas algo me diz que precisamos investir na preservação da liberdade do encantamento interior como forma de valorizar a existência.