As crianças sem rua
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 6

Terça-feira, 05 de Dezembro de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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O tédio gerado pela sensação de inutilidade é um excelente preparador de desequilíbrios para a prática de qualquer violência. Na busca por emoções que quebrem a monotonia e restabeleçam as nossas pulsões vitais, somos capazes de encontrar forças explosivas inimagináveis. Tenho observado o crescimento desse efeito no comportamento de pessoas que na infância não tiveram acesso aos espaços públicos de igualdade de convivência entre as mais diferentes camadas sociais. Os sem-rua tornam-se cada vez mais racionais, mais calculistas, mais técnicos e mais frios no desprezo que revelam em relação ao bem comum. Sentem-se poderosos mas vivem assustados por não saberem exatamente a quem temer. Tudo o que está fora dos muros e grades que receberam como paisagem é ameaçador.

A casa dos sem-rua tem a porta para a garagem e está cercada de equipamentos de proteção. De tantas tentativas de defesa e procura por segurança, os condomínios fechados e os modernos centros comerciais viraram réplicas fragmentadas dos espaços urbanos medievais, caracterizados pelo isolamento e pela intenção de controle da circulação com o “arriscado” ambiente exterior. Muralhas inúteis que, ao invés de garantir a harmonia coletiva, serviram de estímulo à multiplicação da marginalidade. Essa mania de tratarmos a realidade como se estivéssemos permanentemente sendo olhados por ela, reduz a nossa capacidade de enxergar saídas para os impasses sociais que vamos criando e alimentando com sofisticado auto-engano. A voluptuosidade da exceção é fingir-se de regra, como se isso tornasse irreversível o conjunto de privilégios da nossa herança de desigualdades.

Submeter a infância a qualquer tipo de clausura não elimina a realidade que a cerca. A mentira de que a rua, os logradouros públicos e as áreas de lazer dos recantos abertos da cidade tornaram-se propriedade de quem não tem o que perder, dos seres insignificantes, induz a uma cruel iconoclastia do bem comum. As crianças sem-rua crescem com uma impressão distorcida do mundo e confundem as próprias referências. Imagino que chegam a pensar que estão sozinhas com seus pares e que as demais não passam de exageradas estatísticas. Talvez por remorso dos pais, muitas vezes excessivamente ausentes de casa e inertes a tudo que pode ir além de si mesmos, os meninos e meninas sem-rua ganham a falsa liberdade de não precisarem assumir “responsabilidades” na construção mínima da estrutura familiar, seja qual for essa estrutura. Essa situação é um passo firme para a formação de adolescentes intolerantes, sem limites e sem senso de realidade.

Tenho total compreensão de que é um absurdo a exploração do trabalho infantil. Não estou me referindo a essa prática indesejável. Mas os cuidados que devemos ter nesse sentido não deveriam jamais extrapolar o entendimento do quão é fundamental para a criança o seu envolvimento nas múltiplas atividades que fazem o cotidiano de um lar. Nada que não seja também brincadeira, nada que atrapalhe estudar. Desde a infância as pessoas precisam aprender a sentir algum sentido de utilidade em relação ao lugar onde moram. É prazeroso, lúdico e aconchegante. A participação na realização de tarefas e obrigações caseiras vai desenvolvendo lentamente a atração pela vida compartilhada. Coisa simples como a “responsabilidade” de pegar as correspondências na portaria do prédio. Sempre há uma tarefa que pode ser adequada ao tamanho e grau de evolução dessas criaturinhas.

A infância que traz em si o espírito de cooperação naturalmente chega à adolescência com mais facilidade de ter compromisso com a vida comunitária. Se eu estiver equivocado nessa afirmação, devo o meu erro à felicidade de, quando menino, ter vivido uma vida simples e instigante na fronteira entre o urbano e o rural. É provável que esse olhar nem sirva para o que estou me aventurando a colocar em debate, porém tenho uma enorme satisfação por ter tido a chance de, quando pequenininho, ter caminhado junto com os meus pais gerindo a vida entre o trabalho, muita brincadeira e na busca da educação possível. Como não conheço nenhum esforço organizado para resolver o grave problema das crianças sem-rua, fico com vontade de dizer que essa falta insensata de acesso da infância ao mundo como ele é, tem sido o pior indicador social da nossa sustentação.

A infância não merece essa apartação estúpida. Estamos formatando dois tipos quase incompatíveis de gente para o futuro: os orientados pelos encantos das infovias no ciberespaço e os educados pela adversidade das ruas. De um lado, a realidade virtual dos filhos e filhas da classe de consumo, e do outro os seres reais, a imensa maioria no planeta, com forte poder tático de sobrevivência. Duas culturas insuficientes. A questão é de modelo, de prioridade. Precisamos incorporar uma faixa de retorno no leque de projetos que visam trabalhar soluções para essa realidade dramática. As crianças sem-rua não podem ser sacrificadas pelo embrutecimento e pela pusilanimidade dos seus pais. Violência há nos espaços públicos e nos privados. Sabemos disso. Claro que as tragédias das vias públicas têm repercussão mais facilmente escancarada. Segurança não se compra. Ela só existe mesmo quando uma sociedade experimenta a sua própria liberação espiritual. E essa disposição vem do berço.