Um fato trágico ocorrido há 100 anos no município pernambucano de São José do Belmonte ainda repercute na vida daquele lugar, mais conhecido por ser a terra da Pedra do Reino. A cidade foi invadida por jagunços e cangaceiros que executaram por vingança um rico comerciante dentro da sua própria residência; um casarão neoclássico de cinco janelas que compõe o conjunto arquitetônico da bela e arborizada praça de Belmonte.

Esse acontecimento ganhou grande repercussão e permanece na memória coletiva do lugar e dos que se interessam pelo fenômeno nordestino do cangaço por vários dos motivos que são relatados pelo historiador belmontense Valdir José Nogueira de Moura em seu livro “Lampião e a aliança de Gonzaga” (2022), editado pelo sugestivo Centro de Estudos de História Municipal.

A história é contada como se estivesse acontecendo agora, tão ardente é a paixão que o autor manifesta pelo tema. Valdir Nogueira trata da dor e do sofrimento renitente nas pessoas da região, decorrentes da morte do coronel Gonzaga Ferraz, em 20/10/1922, na perspectiva da história cultural e do turismo. O texto não é vingativo, apenas reforça com veemência que a tragédia foi muito além de suas causas.

A posição de valores de Valdir Nogueira é clara. Para ele, Gonzaga Ferraz representava o fluxo de desenvolvimento que trouxera para a região, e o bando de Lampião interrompeu aquele impulso de progresso levando o benfeitor à sepultura, condições essas que não permitiriam outros critérios de interpretação.

Tudo é contado de forma múltipla. A voz que conduz o enredo vai compartilhando vários pontos de vista na ampla e criteriosa pesquisa que deu origem ao trabalho. A leitora e o leitor podem escutar outros historiadores, depoimentos de fontes primárias, cordelistas, descendentes de envolvidos no evento, documentos oficiais e a repercussão da imprensa, como se estivesse em uma ágora sertaneza.

Turistas fazem fotos em frente ao casarão do coronel Gustavo Ferraz, na praça principal de São José do Belmonte (PE). Álbum do projeto Cariri Cangaço, com fotos de Ingrid Rebouças e Louro Teles (2018).

Gonzaga Ferraz chegou a Belmonte na corrida pela borracha de maniçoba, produto que à época, segundo Valdir Nogueira, estava mais valorizado do que o café e a cana-de-açúcar. Construiu fortuna como hábil negociante, fazendeiro, dono de engenho de rapadura, de alambique e de fábrica de descaroçamento de algodão, além de contribuir em questões sanitárias, educacionais, de comunicação (telégrafo) e caritativas.

Passou a ser chamado de “pai dos pobres”, e isso foi percebido pelas oligarquias como uma ameaça. A polarização entre os clãs Pereira e Carvalho impedia que surgissem novas lideranças em Belmonte. Valdir Nogueira expõe com detalhes e curiosidades atraentes tudo o que envolve a brutalidade traumática que abalou o esquema violento, mas estável, das brigas entre os conservadores (Pereira) e os liberais (Carvalho) e seus vínculos com o cangaço.

O autor disseca esse que foi o primeiro grande acontecimento envolvendo Lampião, (Virgulino Ferreira), então um jovem de 24 anos, que havia assumido há pouco tempo o comando do bando de Sinhô Pereira, que largara o cangaço obedecendo a conselhos do Padre Cícero. O recorte adotado por Valdir Nogueira não se detém em contradições fundiárias, bélicas ou formas de subordinação; sua narrativa mantém o princípio tradicional de que as ameaças sociais vêm sempre da parte dos que não são coronéis.

Ao fim e ao cabo, Lampião participa daquela irrupção a serviço de Crispim Pereira (Ioiô Maroto), que, depois do assassinato de Gonzaga Ferraz, passa a morar em Cachoeirinha, distrito de Tauá, onde hoje é Parambu, valendo-se do intercâmbio que existia entre os clãs Pereira do Pajeú e Feitosa dos Inhamuns. A semiose da trama é muito vasta e, com um pouco de analogia de espanto, pode chegar aos dias atuais.