Chico César superlativo
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 10

Domingo, 04 de Agosto de 2002 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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No livro “A Música do Homem” (Ed. Martins Fontes), Yehudi Menuhin afirma com propriedade que “é a música que junta o espiritual e o sensual, que pode transmitir êxtase livre de culpa, fé sem dogma, amor como uma homenagem, e o próprio homem convivendo com a natureza e o infinito”. Lembrei de recorrer a esta definição ao escutar repetidas vezes o novo CD de Chico César. Com os olhos fechados e a consciência aberta o autor de “Respeitem meus cabelos, brancos” (MZA Music) oferece o apuro pleno dos seus sentimentos em uma obra que anima, delicia, comove e afaga. Na qualidade de bom cancionista Chico César revolve corações em tom romântico de rádio e desfia um certo telurismo sanfonado para não esquecer da meninice.

Os novos muros e as novas cercas de arame farpado, cravados pelo atual processo de desnutrição política mundial, comandado por um gringo viciado em guerra, por uma covardia européia, cheia de populismo antiimigração, e pela subserviência colonial aos agiotas do apartheid mercantil, embaralham correlações de perspectivas, mas não impedem a nossa capacidade de reinventar a vida a partir dos elementos mais essenciais da diferença. Quando Chico César canta “cabelo veio da África / junto com meus santos”, ele exalta nesses ícones toda a força de uma gente. Sem recalques e sim pela tática de Nélson Mandela, segundo a qual a vingança dos apartados será efetivada através do estabelecimento da paz. “Deixa, deixa a madeixa balançar”, sacode a coroa dos reis do congo sob o guarda-sol colorido de um canto arrepiado.

Da mesma maneira que Chico César retoma a questão do negro, antes tocada em músicas como “Mama África”, “Filá” e “Mand´ela”, o novo disco retoma um assunto que inquieta o seu “peito catolaico” e a sua indignação quanto a esse deus “perto demais”. Na expressiva “Antinome” saltam interrogações no limite da dor, do desespero e da solidão. Com a participação especial de Chico Buarque, os chicos somam forças para perguntar que Deus é esse que deixa as pessoas serem dilaceradas pela impotência vã. A quem recorrer “quando o invisível some e se esvai / em vinho que não bebo / em pão que não comerei jamais”. A dúvida segue no ar de “Teofania”, com letra de Bráulio Tavares: “eu não sei / se homem suportarei / um sinal, um não”.

Dá gosto apreciar a música inventiva e desembaraçada de Chico César, ouvir sua voz interna alcançando inquietações perdidas, sentir seu compromisso com a calorosa austeridade da emoção. “Respeitem meus cabelos, brancos” soa como uma metalepsia do tratamento injusto dado aos mais velhos, aos negros e aos mais negros. O autor aparece e se auto-retrata sem que desapareçam as pistas, os rastros e a existência do eu coletivo. Chico César é um artista superlativo. Sacode, respira e busca o oxigênio dos sentidos no quadro de asfixia cotidiana da incerteza e do preconceito. Um afortunado do talento a distribuir olhares e impressões, enriquecidas por sonoridades melodiosas e ritmos ardentes, prontos para entreter, despertar e encontrar pares e ímpares.

Com o compositor Luis Pastor, inaugura a parceria “Nas fronteiras do mundo”, em pleno momento de retrocesso europeu nas medidas restritivas à imigração. Os ultraconservadores das alemanhas da vida – ou da morte – têm declarado aos quatro ventos que estão “cheios dessa misturada de culturas”. Luis Pastor é um renomado artista espanhol e há anos canta com a “África en los ojos”. A música que fizeram juntos clama pelos que nem sabem exatamente quem são. Mas sabem que são muitos e sabem que muitos são africanos. “Sou tu, sou ele / escravos no novo século / mão-de-obra barata / sem contrato / sem documento / sem direitos”, cantam contra as tabuletas ideológicas de mal-vindos.

Sempre se fala sobre os dissabores da apartação, mas raramente se pára para pensar sobre as agruras das suas (in)conseqüências. “Respeitem meus cabelos, brancos” poderia ser um dos hinos das lideranças africanas que há poucos dias se reuniram em Durban, na África do Sul, com a proposta de tirar da miséria o continente mais agredido do mundo. Mas a música de Chico César chama a atenção para que a União Africana não se restrinja a problemas meramente territoriais. A desigualdade é um problema humano, de todos os seres humanos que se respeitam. Lamentavelmente os analistas da imprensa “branca” insistem em desdenhar desse tipo de esforço de superação. Repetem que o caminho é longo e que essa união é “uma boa idéia que com toda a certeza dará errado”. Peitica de quem vive no bem-bom às custas dos outros. Olha o respeito, mano!