Companheirismo civil
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 10

Domingo, 16 de Março de 2003 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Companheiro é uma palavra testada, amadurecida e com admirável força de invocação. Com designações muitas vezes adequadas às mais variadas circunstâncias e interesses, conseguiu transitar através do tempo sem perder a sua atribuição mais essencial. Tem, portanto, peso, perenidade e expressividade. É uma palavra aberta à compreensão comum, pronta para acolher quem quiser se entregar ao que ela significa em si e em nossas lembranças e expectativas. Cenas de companheirismo aparecem com freqüência na literatura, no cinema, na música, no lugar de trabalho, nos movimentos populares, na maçonaria, nos sociedades de serviço, no sindicalismo e em expedições de lazer.

Em alguns casos ela corre o risco de desgaste por ser confundida nas atitudes de cumplicidade em grupos, tribos, claques e clubes de sobrevivência, com as suas tentações de banalização do companheirismo. Mas mesmo por trás dessas superfícies o seu sentido verdadeiro sempre escapa dominando fragilidades. A descoberta da necessidade do companheirismo é uma virtude individual e instintiva do ser humano, mas principalmente um valioso bem de evolução inventado pela sabedoria coletiva. Desconheço alguém que em sã consciência tenha ficado incomodado por ser chamado de companheiro. Nascida da dinâmica das relações, por onde quer que essa palavra passe, ela sempre soa como positiva, agregadora e plena de sentido de semelhança.

Companheiro é um termo que cabe em todas as circunstâncias que envolvem fraternidade, sinceridade, amizade e sentido compartilhado de destino. O companheirismo não depende da meteorologia social para ser bom ou ruim. Na alegria e na dor a prática do seu significado pode estar presente com toda a sua desenvoltura. Simples, esplendorosa e polissilábica, essa palavra tem recado instantâneo porque prescinde de reciprocidade. Ela exige respeito mútuo, crença no outro e no sucesso das individualidades, como condição para a busca dos interesses favoráveis ao equilíbrio do todo. Aos verdadeiros companheiros, de pouco valem os desígnios da sorte, da distância física e as particularidades da operação da vida. Ser companheiro está respaldado nos sentidos mais profundos do viver.

É praticamente habitual a valorização do companheirismo em momentos de vulnerabilidade e dependência. Mas, pensando bem, é muito fácil ter pena. O difícil é admirar. Ambas são posturas benevolentes, embora isso não pareça tão claro assim. O grande teste do companheirismo está na hora da vitória. As causas sociais não são apenas as degradantes, as que regozijam merecem mais do que tudo a força solidária da alegria. A compaixão está separada das situações humilhantes apenas pela tênue membrana da mutualidade de empenhos entre as pessoas, misturando via de regra um estranho ar de superioridade com sensação de devedor. Experimentar o sentimento de respeito e simpatia pelo que o outro é e faz é um dos mais sublimes exemplos de autenticidade no companheirismo.

Quando uma nação se ilumina de esperança mobilizadora, como verificamos na disposição recente da gente brasileira, não dá para desperdiçar o caráter de companheirismo civil que se esboça nas mais distintas manifestações de crença da população. Mesmo com o desserviço causado pela antropofagia dos falsos companheiros de luta que desgastam todo processo de evolução política e cultural por conta do ceticismo da esperteza despachado na encruzilhada entre o discurso progressista e o umbigo eleitoral. Enquanto isso, o cavalo da cultura do companheirismo passa selado desafiando o enduro do tempo em busca do melhor caminho e das melhores soluções diante da realidade.

Aprender a conviver numa situação nova, com novas possibilidades e inusitados horizontes é um dever cívico e humanitário. Assimilar a dimensão do companheirismo coletivo robustece ideais e faculta as pessoas o direito de pensar calorosamente um país com a inclusão do outro. Intensificada a noção do prazer de caminhar junto, lado a lado, surge o lugar para o gérmen do valor aos pequenos feitos, do detalhe que move uma aventura que excede ao bem-estar e que guarda em seu âmago a magia do momento em que nos deitamos para fazer os filhos. O Brasil é um país a ser sedimentado em sua multiplicidade natural e cultural. Não dá para cumprir essa tarefa sem sociedade. E a melhor maneira de acreditar em tudo isso, companheiro leitor, é trabalhar de coração para o encorajamento do companheirismo civil que nos acena, sem o qual seremos uma nação eternamente vulnerável e empobrecida.