Do zelador, em nome da escola
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.3
Quinta-feira, 31 de Maio de 2012 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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O ato de educar torna-se mais pertinente à sua finalidade engrandecedora quando vinculado a crenças e experiências que movem a realidade circundante. Nessas circunstâncias, as aparências cedem lugar a organicidade, desafiando as normas relacionais, questionando valores e alterando a maneira de agir das pessoas e dos grupos sociais. Tornei-me testemunha da aplicação desse ponto de vista ao participar do “Dia do Autor”, sábado passado (26), na Escola Municipal Desembargador Pedro de Queiroz, na cidade de Beberibe, a pouco mais de oitenta quilômetros de Fortaleza.

Tudo começou quando recebi um correio eletrônico assinado por Jimmy Gonçalves, em nome daquela escola, que é a maior do município, com cerca de oitocentos estudantes do Ensino Fundamental I e II. Era uma mensagem que eu já estava esperando, pois ele tinha falado com o jornalista Luís-Sérgio Santos, que é de lá, para mediar um contato comigo: ” Escrevo-lhe para informar que os professores já estão trabalhando com os alunos sobre sua biografia e obras (…) Garanto que será uma ótima tarde (…) E que dia 26 estaremos aqui para esse maravilhoso encontro de cultura e arte em torno de seu trabalho”.

Não deu outra, peguei a estrada com a minha família e fomos mais uma vez a Beberibe. Só que desta feita o nosso objetivo não era usufruir das belas falésias, dunas e fontes de água doce à beira-mar, mas atender o atraente convite do “professor” Jimmy. Chegamos um pouco antes da hora e vimos que ainda havia todo um movimento de arrumação do espaço para o evento. Perguntei pelo “professor” Jimmy a uma menina que estava no portão. Ela olhou para mim com cara de quem tinha identificado algum engano em minha pergunta e disse: “O Jimmy está ali”. E apontou para um rapaz que se aproximava, vestindo um jaleco azul, que tinha por baixo uma camiseta branca, na qual estava escrito: “Era uma vez”…

Após nossos cumprimentos, ele me apresentou à professora Mardênia Colaço, diretora da escola, à dona Maria Valderez, secretária municipal de educação, e à professora Lúcia Carneiro, coordenadora da Sala de Leitura; no que eu apresentei a Andréa e os nossos filhos Lucas e Artur para ele e elas. Em seguida, houve contação de histórias, inclusive um bonito teatro de sombras com o conto “O piolho ciumento”, do meu livro/cd Flor de Maravilha. E chegou a hora da minha fala. Auditório formado por crianças, educadoras, pais e com a presença da cordelista Maria Luiza Alves.

Jimmy comandou o debate. Em sua abertura, disse com incontida satisfação que era o zelador da escola e que estava feliz com aquele evento. Nesse momento, vi em Jimmy um aceno da esperança que tenho numa parte significativa de brasileiros que, a despeito do que temos visto de degradação das nossas figuras públicas, são capazes de dar lições de compromisso com o algo mais, com algo maior do que os rótulos sociais a que estão ancorados. Sabemos que essas situações existem, mas é animador quando nos deparamos com elas. Jimmy traduzia ali a ideia de que todos podemos ser educadores, onde quer que estejamos, fazendo o que for.

Zelador é uma profissão que boa parte das pessoas ignora. Infelizmente a maioria dos zeladores também pensa assim. No entanto, poucas pessoas param para observar que o zelador, assim como a moça da cantina ou o porteiro da escola tem uma vida familiar, um bairro onde mora e os saberes da sua própria história de vida. Por isso, o encontro com o Jimmy foi para mim uma homenagem à educação e à cultura no que juntas elas transformam pela fragilidade e pela força do educar. Como zelador, ele zela pela limpeza do estabelecimento de ensino no qual trabalha, mas zela também pelo que há de mais rico na vida social que é a convivência sadia das trocas culturais.

Fiquei muito contente com essa oportunidade que a mim foi dada por aquele zelador, com sua autoridade de quem acredita e de quem age em favor dos desafios da vida escolar. Entre educadores, um semelhante; entre os estudantes, um próximo. Mas a atitude de Jimmy não é um ato isolado; ela está carregada de sentido do que pode uma escola que se mostra preparada para acolher a exceção. A aprendizagem aqui ganha seu ponto de sustentação na hipótese de o zelador pedir passagem e não encontrar barreiras hierárquicas; o que atesta um exercício de grandeza da direção e das educadoras, numa elogiável compreensão de que agregar é uma das condições da pessoa, independentemente do seu grau de escolaridade e da função que ocupa.

Na condição de zelador-educador, Jimmy se iguala aos comprometidos, sem precisar forçar a incorporação de qualquer tipo de pose e dispensando máscaras. Estava ali rompendo preconceitos e libertando virtudes, apenas sendo o que é. Em alguns dos momentos em que era aplaudido, tive a curiosidade de observar brilho de orgulho nos olhos do filho dele, Jessye Patrício. Pela descoberta da vontade de educar e pela coragem de se expor, seu pai, deixa de ser apenas o rapaz da limpeza, o serviços gerais, para ser reconhecido também como um educador.

Na vida comunitária não racionalizada e não massificada, comportamentos como esse do Jimmy são normais e frequentes. As manifestações populares, as relações de vizinhança, estão cheias de mestres que educam pela cultura, na dinâmica do cotidiano, a despeito de classificação social. Ao levar para dentro da escola essa vertente educativa da vida comunitária, ele contribui para dar fluidez ao ato de educar. E faz isso movimentando elementos universais próprios do humano, sem atropelos e com senso de sinergia e de complementaridade, numa relação de respeito mútuo com os corpos docente e discente.

No pequeno intervalo existente entre a minha exposição inicial, sobre como lido com a literatura em minha vida, e o afetuoso debate que se abria pelo final daquela tarde até as primeiras horas da noite, ele me aborda com um exemplar do meu livro “Fortaleza” em mãos e pede para que eu o autografe para uma professora. Tomo uma refrescante e saborosa água de coco, enquanto ofereço o trabalho, seguindo o pedido do meu anfitrião. Em seguida, Jimmy pega o microfone e chama a professora de português Rosália Nascimento para receber o livro. E exclama vaidoso : “Eu não disse que lhe daria de presente um livro autografado pelo autor!”.

A satisfação de estar fazendo aquilo é um ato virtuoso de idealização; talvez uma ação de realidade inconsciente, um significado que não seja somente dele, mas de todos os que se dispõem a instaurar valores fundamentais para a educação, como o de ver no outro alguém que também educa. Casos notáveis como este reforçam a necessidade que a educação tem de aproximar saber e conhecimento. Falo de saber como vivência e de conhecimento como ciência. Saber, como o que está experienciado, acumulado no viver, e conhecimento, como o que está teorizado, que passou por estágios ordenados de apreciação.

Um dos mais graves problemas da educação na hipermodernidade é a deformação pedagógica que leva os estudantes a terem muito conhecimento e pouco saber; formando contingentes de inteligentes vazios, atordoados pelo dilema entre a carreira ou a vida. Em uma época marcada por esse tipo de decadência valorativa é muito importante saber de pessoas como o Jimmy, que exercem o direito de lançar-se para além dos estereótipos porque têm alguma coisa maior que o interessa, que é uma inclinação social participativa integral e integrada, que conceituo de cidadania orgânica.