O mundo é predominantemente constituído por seguidores. Mesmo as pessoas que atuam como influencers na sociedade das redes digitais não passam de coadjuvantes das que manipulam os seus impulsos de exposições compulsivas. O que acontece com quem não faz parte dos grupos privilegiados e tem vontade de ocupar lugar de destaque é um drama à parte. 

A peça “O Figurante”, de Miguel Thiré, protagonizada pelo ator Mateus Solano (43), conta a história de um desses indivíduos que despertam para a possiblidade de assumir algum papel principal nas produções audiovisuais em que atua. Assisti a esse monólogo existencial e cômico de 70 minutos sábado passado (01/03), no Teatro Renaissance, em São Paulo. 

O personagem vivido por Solano decalca os seus próprios dias em uma rotina iniciada com o alarme do telefone e atos diligentes de banheiro e café da manhã, quando verifica em suas notas que personagem irá figurar, imaginando suas possibilidades no palco. Em seguida, sacoleja no ônibus até o estúdio de gravação, faz o que lhe mandam fazer e retorna para casa sentindo-se subaproveitado. 

A estrutura dramática de Isabel Teixeira, Miguel Thiré e do próprio Mateus Solano adota o recurso da repetição como pedagogia de apreensão da trama. As idas e vindas do personagem de “O Figurante” lembram a rotina do limpador de banheiros do filme “Dias Perfeitos”, de Wim Wenders, interpretado pelo ator japonês Kôji Yakusho. 

A diferença entre eles é que o ser solitário de “Dias Perfeitos” conseguiu transformar em figurante o que se passa ao seu redor através do hábito de escutar velhas fitas k-7, de usufruir de experiências literárias e de fazer fotografias da natureza. Já o personagem de “O Figurante”, limitado ao seu trabalho, queria um papel que pudesse falar, e não apenas ocupar uma função. 

Mateus Solano na peça O Figurante. Montagem/Neofeed, com fotos de Dalton-Valerio.

O figurante, como o nome diz, aparece compondo cenas, seja como pedestre, mecânico, garçom ou como um submisso CEO de uma empresa que passa a ter sua governança assumida por herdeiros. Inconformado com a sua insignificância diante das circunstâncias representadas, ousa falar, mas é veementemente repreendido pela produção. 

Mateus Solano dá um show de movimentos corporais, dirigidos por Toni Rodrigues. Cada momento vivido pelo personagem fora do tempo de gravação é traduzido gestualmente para a plateia em pantomimas relevadoras da fragilidade da pessoa secundária em seu estado absoluto. Tudo isso em um figurino de Carol Lobato, misto de macacão de operário de chão de fábrica e de paletó de executivo. 

O dilema existencial que orienta a montagem é o clichê clássico hamletiano “Ser ou não ser, eis a questão”, do dramaturgo inglês William Shakespeare (1464 – 1616). As desventuras têm um lado cômico em seus tiques diários, e isso é muito bem sincronizado com o traçado de luz de Daniela Sanches e a arquitetura de som de João Thiré, que assina também a trilha original e a direção musical do espetáculo. 

Ao longo da peça, nota-se que o esgotamento do personagem interpretado por Mateus Solano não está na dureza dos seus deslocamentos de ida e volta ao trabalho, nem mesmo na sua própria condição social, mas nas barreiras que o impedem de deixar de ser figurante. Esta é uma situação que alcança cada um de nós quando somos privados de nos colocar e de contribuir com algo, simplesmente por nos encontrarmos na condição de figurante. No palco, o personagem insiste em ser pessoa em vez de apenas uma função, e é considerado culpado por atrapalhar as gravações. Demitido, assume o papel principal de sair em busca de si. 

Fonte:
Jornal O POVO